Fonte: Quando é dia de futebol. Pesquisa e seleção de Luis Maurício Graña Drummond e Pedro Augusto Graña Drummond.; posfácio de Pelé. Record, 2022, pp. 150-151.

O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que, diabolicamente, não se deixa fazer. O gol.

Que adianta escrever mil livros, como simples resultado de aplicação mecânica, mãos batendo máquina de manhã à noite, traseiro posto na almofada, palavras dóceis e resignadas ao uso incolor? O livro único, este não há condições, regras, receitas, códigos, cólicas que o façam existir, e só ele conta – negativamente – em nossa bibliografia. Romancistas que não capturam o romance, poetas de que o poema está se rindo a distância, pensadores que palmilham o batido pensamento alheio, em vão circulam na pista durante 50 anos. O muito papel que sujamos continua alvo, alheio às letras que nele se imprimem, pois aquela não era a combinação de letras que ele exigia de nós. E quantos metros cúbicos de suor, para chegar a esse não resultado!

Então o gol independe de nossa vontade, formação e mestria? Receio que sim. Produto divino, talvez? Mas, se não valem exortações, apelos cabalísticos, bossas mágicas para que ele se manifeste... Se é de Deus, Deus se diverte negando-o aos que imploram, e, distribuindo-o a seu capricho, Deus sabe a quem, às vezes um mau elemento. A obra de arte, em forma de gol ou de texto, casa, pintura, som, dança e outras mais, parece antes coisa-em-ser na natureza, revelada arbitrariamente, quase que à revelia do instrumento humano usado para a revelação. Se a obrigação é aprender, por que todos que aprendem não a realizam? Por que só este ou aquele chega a realizá-la? Por que não há 11 Pelés em cada time? Ou 10, para dar uma chance ao time adversário?

O Rei chega ao milésimo gol (sem pressa, até se permitindo o charme de retificar para menos a contagem) por uma fatalidade à margem do seu saber técnico e artístico. Na realidade, está lavrando sempre o mesmo tento perfeito, pois outros tentos menos apurados não são de sua competência. Sabe apenas fazer o máximo, e quando deixa de destacar-se no campo é porque até ele tem instantes de não-Pelé, como os não-Pelés que somos todos.

O mundo é feito de consumidores, servido por alguns criadores. O desequilíbrio é dramático, e só não determina a frustração universal porque não nos damos conta de nossa impotência criadora, e até nos iludimos, atribuindo-nos uma potência imaginária. Ainda por absurdo desajuste, a criação, em muitas áreas, nem sequer é absorvida pelos consumidores em carência. Muitos seres não sabem consumir, vegetando em estado de privação inconsciente. Para o consumo, sim, é necessário aprendizado. Mas os milhões de analfabetos, subnutridos e marginalizados, dos mundos ocidental e oriental, não desconfiam sequer de que há alimentos fascinantes para fomes não pressentidas.

Afortunadamente, no caso do Pelé, a comida de arte que ele oferece atinge o paladar de todos. O futebol é desses raros exemplos de arte corporal e mental que promovem a felicidade unânime, embora dividindo a massa, pois a fusão íntima se opera em torno da beleza do gesto, venha de que corpo vier.

Os mil gols de Pelé são um só, multiplicado e sempre novo, único em sua exemplaridade. Não sei se devemos exaltar Pelé por haver conseguido tanto, ou se nosso louvor deve antes ser dirigido ao gol em si, que se deixou fazer por Pelé, recusando-se a tantos outros. Ou ao gênio do gol, que se encarnou em Pelé, por uma dessas misteriosas escolhas que a genética ainda não soube explicar, pois a ciência, felizmente, ainda não explicou tudo neste mundo.

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.