Ali era mar, possivelmente mangue, como toda a orla ainda intocada da baía. No tempo de D. João VI os barcos abicavam ao pé do outeiro da ermida, e maré lambia os seus contrafortes. Depois, nesta angústia de espaço, em que nos debatemos no Rio, foi-se aterrando, alargando o caminho estreito entre o morro e o mar, conquistando terreno ao mangue. Hoje temos os jardins da Praça Paris, o Russell, o Flamengo, o aeroporto, tudo obra do aterro. Há os saudosistas que se insurgem contra a mutilação da paisagem. Mutilação por que, meu Deus? Onde é que mangue foi paisagem? Quem vê, pensa que já se está correndo risco de aterrar toda a Guanabara, tão pequena que ela é. Mas, embora que isso fosse possível, por algum heroísmo sobre-humano de engenharia, qual seria o mal? Paisagem? Se alguma coisa temos demais, neste país, é justamente paisagem. E em que uma paisagem de água parada, e nem sempre cheirosa, é mais bonita que um jardim, ou mesmo uma linha de casario? Ora, paisagem. Eu de mim, confesso que sou fanática é pelas obras do homem; um aqueduto, um aterro, um paredão de muralha, um cemitério, uma igreja, acho que têm milhões de vezes mais interesse do que qualquer panorama natural. Parece que na velha pedra talhada, na velha argamassa, fica escondido um pouco do fugitivo mistério do homem, um pouco do seu sangue e dos seus sonhos. Não me venham com montanhas, nem mares, nem florestas. Ninguém troca toda a Cordilheira dos Andes por uma só das pirâmides do Egito. Precisa haver marca da mão de homem, pé de homem, coração de homem, para dar interesse à natureza bruta. História de homem, suas guerras, suas ambições, seus erros trágicos, seus impulsos.
Deixa, portanto, o carioca construir a sua cidade, aterrando mais um pouco a orla lamacenta da baía; deixa a gente fazer o nosso chão, plantar os nossos marcos. Daqui a alguns séculos, quando, do povo que nós fomos, só existir uma memória longínqua ― ou nem isso ―, será muito mais fascinante para o filho da era nova a descoberta dessas obras que fizemos com tanto sacrifício, com tão pouco dinheiro, ― esses morros derrubados, esses enrocamentos mar afora, essas ruínas de casas, do que uma curva mais larga de mar ou um risco mais alto de montanha.
E assim, bem seja o aterro da Glória, onde mais tarde haverá jardins, museu, teatro. Por ora, entretanto, o que lá vai haver é o Congresso Eucarístico Internacional de 1955, festa imensa de cristãos. E antes mesmo do Congresso, para lhe marcar a primeira etapa, haverá na hora zero que separa o ano velho do ano novo uma grande missa campal.
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O Brasil começou com uma missa ao ar livre, à beira-mar; e quem sabe é por falta de missas, boas missas a campo aberto, que ele anda tão degringolado e triste? Uma solene missa, uma linda missa, cantada, iluminada, imensa, com toda a pompa e beleza do culto, consagrando a terra nova tomada ao mar salgado, redimindo a terra velha, tão carregada de pecado e miséria. Missa rompendo o ano novo, vinho de missa em vez das champanhotas, mulheres de mantilha em vez de vestidos de baile, e em lugar dos brados alcoólicos de feliz ano novo, um bater nos peitos e um murmúrio de Domine non sum dignus; e em vez das oferendas às maliciosas divindades das águas, a procissão de pescadores vinda de Niterói, conduzindo a imagem da rainha dos mares, com seu vestido branco e seu manto azul-celeste, aquela que alguns pensam que é Iemanjá, que outros chamam de Stella Maris, mas que é mesmo Maria, Nossa Senhora, mãe de todos os homens, rainha da terra, das águas, dos anjos, dos santos e dos pecadores.