Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p.494.  Publicada, originalmente, na revista [Careta], de 28/01/1922 e, posteriormente, no livro Feiras e mafuás,  Brasiliense, 1956, p.83. 

Como herdeiro de Estácio de Sá, o nosso maravilhoso prefeito, com toda a solenidade, e após cerimônias preliminares, resolveu transferir os veneráveis ossos do venerável “avô”, do Castelo para outro local desta cidade.

Estácio de Sá não sei se teve algum título do governo da cidade que fundou. Sei, porém, que, quando andou por aqui, isto ainda era uma brenha braba, cheia de bichinhos e bicharocos, onde se espalhavam franceses ousados nas malocas do gentio aguerrido, seu aliado e industriado no melhor modo de combater os portugueses.

Frei Vicente do Salvador conta com muita simplicidade como Estácio fundou a cidade. Entrou, com seus companheiros, na enseada a 1º de março de 1565, e “saltaram em terra, e feitos tujupares, que são umas tendas ou choupanas de palha, para morarem, onde agora chamam cidade velha, ao pé de um penedo que se vai às nuvens, chamado Pão de Açúcar, etc., etc.”

Portanto, o esforçado capitão-mor morava numa cabana coberta de colmo e dormia num jirau. Imagino o sofrimento do conquistador com os mosquitos; e adivinho também que, em sonhos, o parente do poeta Sá de Miranda tivesse antevisto a nossa atual Saúde Pública, matando-os num ano, criando-os em outros, para gáudio das angélicas enfermeiras norte-americanas.

Se eu tivesse a veia épica, como um cronista esportivo, escreveria uma epopeia sobre a fundação do Rio de Janeiro e, num canto, desenvolveria esse sonho de Estácio. Infelizmente, porém, a minha musa não tem essa capacidade e tomo o alvitre de apontar a ideia a outrem mais bem-dotado.

A vida que, durante dous anos, levou, no sopé do Pão de Açúcar, o guerreiro português, não era das mais cômodas, tanto mais que tinha de guerrear incessantemente – uma guerra prolixa, como a chama Frei Vicente do Salvador.

Foi pena que ele ainda não previsse o tino administrativo dos prefeitos modernos que se preocupam com hotéis luxuosos e “mosquiteiros” patenteados.

Estou bem certo, se assim fosse, mais depressa teria batido aos franceses e a tamoios, seus aliados, dispensando o auxílio do tio; e hoje teríamos um Rio de Janeiro completamente cassino suíço, para repouso dos estrangeiros e desespero dos nacionais.

Naquele tempo, porém, os governadores e guerreiros não tinham essas úteis e paternas preocupações de conforto exagerado dos recém-chegados à fortuna. Eram nobres de quatro costados e a sua nobreza não se manifestava com calistas e “manicuras”, mas em feitos duradouros. Dormiam em cima de jiraus e puxavam valorosamente o terçado quando o inimigo os obrigava. O senhor Carlos Sampaio que, por via do seu cargo, descende de Estácio de Sá, estaria bem aviado se tivesse que levar a vida que este levava. Pode-se lá admitir o operoso administrador que o senhor Carlos Sampaio é, sem cadeiras estofadas, automóvel e sem serviços de porcelana para as suas refeições? Absolutamente não.

O senhor Parreiras pintou uma grande tela que está no Paço Municipal, representando a morte do fundador desta cidade. O atual capitão-mor da nossa metrópole, quando sai do seu gabinete, topa logo com esse quadro. Disse-me um amigo que, certa vez, o senhor Sampaio parou diante da obra do senhor Parreiras e observou a um “toma-larguras” da sua comitiva:

– Você está vendo onde o “meu” Estácio morava? Num casebre indigno da “Favela”... A “coisa” vem de longe... Ainda querem que eu acabe com “aquilo”... O mal tem raízes antigas.

Isto não impediu que ele fosse cheio de compunção assistir à exumação dos restos do esforçado guerrilheiro português. Há quem duvide que os tais despojos fúnebres sejam mesmo de Estácio de Sá. Eu admito que sejam, porque ainda não apareceram outros do sobrinho de Mem de Sá, como tem acontecido com vários heróis e relíquias de santos e do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo.

Esse culto a relíquias e a restos mortais de santos e heróis é cousa sempre duvidosa, não pela sua essência que, em geral, é segura; mas pela autenticidade dos objetos, das imagens, das tíbias, dos fêmures que, às vezes, podiam ter pertencido a varões de vida pouco edificante. Não lembro aqui A Relíquia do Eça, porque toda a gente a conhece; lembro, entretanto, um conhecido prolóquio popular: “mais vale a fé do que o pau da barca”.

Tudo me leva a acreditar que o senhor Sampaio pensa assim e as homenagens que prestou aos ossos de Estácio de Sá revestiram-se da maior fé de que tinha mesmo, sob os seus olhos, o esqueleto do seu antecessor e quase parente. Além da compunção que o ato de exumação exigia, o prefeito contemporâneo devia também sentir remorsos, em presença daquela ossada do fundador do Rio de Janeiro abrigado dentro da baía, e que ele e mais outros colegas estão transferindo para as margens do alto oceano, no intuito de valorizar terrenos sobre águas.

É que Estácio de Sá a fundara assim porque dormia em jiraus, e a cama dura dos seus sucessores não os pode suportar, é refinadamente civilizada e pede colchões macios e de grande preço, segundo os preceitos de Wall Street.

lima-barreto