Pedro e Ciro, Chácara Arara, Londrina-PR, 1949. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Neste momento em que boas novidades parecem ter virado raridades, é uma alegria poder anunciar que nosso Portal acaba de ser enriquecido com um novo lote de crônicas de Fernando Sabino, e que muito em breve outras tantas estarão aqui incorporadas.
Alegria, pois, e das graúdas, à altura de um dos mais indiscutíveis mestres da crônica brasileira. Chega a dar inveja de quem vai pela primeira vez mergulhar na sua copiosa e bem peneirada produção no gênero, com um prazer comparável ao de quem, a partir da década de 1950, “descobriu” Sabino em jornais do Rio, com frequência às vezes diária – ou, mais caprichado ainda, na Manchete, revista que se dava ao luxo, hoje inimaginável, de trazer também, toda semana, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e, de quebra, Henrique Pongetti.
A página de Fernando Sabino, ali, chamava-se “Aventura do cotidiano” – e era bem isto o que o escritor mineiro servia ao leitor: uma boa história garimpada no dia a dia, e tratada, não raro, com recursos do fino ficcionista que em 1956 nos deu a sua obra-prima, o romance O encontro marcado. Não surpreende que o próprio autor considerasse como pequenos contos algumas de suas crônicas. Aquela, por exemplo, das mais famosas, que deu título a uma de suas melhores coletâneas e que rendeu filme, “O homem nu”.
Ninguém como Sabino, entre nossos cronistas, para extrair literatura de trapalhadas do cotidiano. Mas repare: não estamos diante de meros “causos” divertidos. Faça a prova quem duvida disso: tente, com suas palavras, extrair o mesmo efeito obtido por ele num palmo de crônica. Ninguém se iluda com a aparente facilidade de algo que no mais das vezes custou muito trabalho. Trata-se daquilo que o poeta e psicanalista Hélio Pellegrino chamou de “a difícil arte de escrever fácil”.
Não faltam, nas crônicas aqui recém-chegadas, outras bem-sucedidas ilustrações do talento de Sabino para minerar trapalhadas, bizarrices e mal-entendidos, por ele processados e convertidos no metal da boa prosa. É o caso de “Notícia de jornal”, sobre um homem que ele jamais viu, de quem não sabe sequer o nome, e que no entanto tem o poder de tirá-lo do prumo. Ou de um “assassinato sem cadáver”, cujo título, intrigante até onde possa, já nos obriga a ler sem mais tardança. E o que dizer, então, de “O fio invisível”, a que não falta uma navalha subitamente aberta enquanto o elevador se arrasta em direção ao último andar? Ou, ainda, menos arrepiante, "Olho por olho", na qual Sabino, um craque, dribla aquilo que poderia resultar grotesco, e, em vez disso, nos garante gargalhada. Mais: “Bolo de aniversário”, capaz de nos manter cativos, salivantes, até que o autor nos sirva a última fatia da história – com direito, aqui, a um repeteco auditivo, na voz de Verônica Sabino, cantora e filha do cronista.
“O afinador de pianos” narra o reencontro acidental, muitos anos depois, do personagem-título, agora bem vestido, com a moça que o reconheceu por detrás da gravata. Acidental e acidentado, pois o afinador, numa atitude até então impensável, a certa altura vai desafinar irremediavelmente aos olhos dela. Na vida real, essa moça... – não, não vou estragar aqui sua leitura. Nada a ver, essa história, com a de outro profissional do teclado, deliciosamente contada por Sabino em “Pó sustenido”. Também não se vai antecipar aqui o desfecho de “A volta”, cujo enredo bem que mereceria versão cinematográfica. Como também, aliás, “Conversa de homem”, crônica da qual se poderia tirar um divertido episódio em curta metragem.
Observador atento de seu semelhante, Fernando Sabino é também, volta e meia, personagem de si mesmo. Nunca, porém, no afã patético de ficar bem na foto. Ao contrário, ele não hesita em expor fragilidades suas – como o pavor que experimenta em “A morte vista de perto”, quando, voltando para casa, à noite, numa rua deserta de Londres, percebe que no táxi emparelhado a seu carro uma velha horrenda não tira os olhos dele. Nem precisava de tanto para inundar-se de insegurança e medo: enquanto caminha por uma rua deserta de Ipanema, numa noite de “Sexta-feira” da Paixão, quem o segue é apenas “um cão humilde e manso”, porém “terrível na sua pertinácia de tentar-me, medonho na sua insistência em incorporar-se ao meu destino”. E será pior sem ele, descobre o cronista no momento em que o cão o abandona.
Há pelo menos um caso em que o personagem Sabino se dá bem numa solitária andança noturna: aquela historinha hilariante vivida nos anos 1960 na Eslovênia, então parte da hoje retalhada e extinta Iugoslávia. A caminho de um jantar de escritores, ei-lo numa estrada escura que deveria levá-lo ao restaurante, num ermo à beira de um lago. De repente, parece impossível chegar lá: conseguirá o escritor brasileiro fazer-se entender pela abrutalhada motorista do táxi, se a criatura não fala inglês, francês, italiano ou espanhol, nem ele uma só palavra de esloveno? Simples: “basta saber latim”... Mas será que isso é suficiente para garantir um happy end?
Menos bem-sucedido será ele em “O buraco negro” – entidade maligna que, mancomunada com o “Caboclo Ficador” e o “Caboclo Escondedor”, invariavelmente lhe impõe derrotas no front doméstico. No mesmo cenário está também o Fernando Sabino que, confrontado com pilhas de louça e de roupa suja, parece arrependido de ter dado férias à empregada – ele, que até há pouco se sentia tão autossuficiente para os embates do lar, e que agora humildemente entrega os pontos: “A falta que ela me faz”...