Fonte: As melhores crônicas de Fernando Sabino, Record, 1986, pp. 89-91.

Ando um pouco distraído, ultimamente, reconheço. Alguns amigos mais velhos sorriem, complacentes, e dizem que é isso mesmo, costuma acontecer com a idade, não é distração: é memória fraca mesmo, insuficiência de fosfato.

O diabo é que me lembro cada vez mais de coisas que deveria esquecer: dados inúteis, nomes sem significado, frases idiotas, circunstâncias ridículas, detalhes sem importância. Em compensação, troco o nome das pessoas, confundo fisionomias, ignoro conhecidos, cumprimento desafetos. Nunca sei onde largo objetos de uso e cada saída minha de casa representa meia hora de atraso em aflitiva procura: quedê minhas chaves? meus cigarros? meu isqueiro? minha caneta?

Já me disseram que sou bom de chegada e ruim de saída. A culpa não é minha: segundo minha filha, é do Caboclo Ficador.

Hoje ela veio me visitar e a influência desse caboclo na minha vida ficou mais do que evidente. Saímos juntos, e na hora de transpor a porta de entrada, parecia que uma força misteriosa me prendia em casa, tantas vezes tive de voltar para buscar alguma coisa que havia esquecido. O Caboclo Ficador me fez esquecer a chave do carro, voltei para apanhá-la; já estava dentro do carro quando dei por falta da carteira de dinheiro, fui buscá-la; de novo no carro, vi que deixara outra vez a chave em casa. Foi preciso, como sempre, uns bons quinze minutos de concentração e revista geral dos bolsos, para ver se não havia esquecido mais nada. E finalmente o Caboclo Ficador me deixava partir.

Minha filha afirma que o jeito é me submeter humildemente às ordens dele.

 

Descobri que sou vítima de outra entidade do mundo oculto: o Caboclo Escondedor.

É ele que faz com que eu não saiba onde meti os óculos, e saia revirando a casa, para descobri-los no alto da cabeça, quando, já tendo desistido, me olho ao espelho do banheiro para pentear os cabelos. Em compensação, não encontro o pente. E ele quem esconde a caneta entre as páginas de um livro, atira o talão de cheques na cesta de papéis, enfia a penca de chaves entre as almofadas do sofá.

Um dia, desesperado à procura de um papel, retiro todas as gavetinhas da secretária, e surpreendo um dos esconderijos do Caboclo Escondedor, verdadeiro ninho nos objetos desaparecidos: meto a mão lá dentro e recolho não só o papel que procurava, mas outros sumidos há muito, recortes de jornal, envelopes amassados, cartões de visita, clipes enferrujados, retratos amarelados, e até uma carteira de sócio do sindicato dos jornalistas.

Há um código de ética com relação aos desígnios do Caboclo Escondedor: respeite a sua vontade, não insista além do razoável na procura do objeto escondido, e, assim mesmo, só para contentá-lo. Convém não desapontá-lo, abrindo mão dessa procura. Não é preciso procurar freneticamente, como já fiz tantas vezes, abrindo e fechando gavetas, revirando a casa feito doido, para acabar plantado no meio da sala apalpando os bolsos vazios como um tarado. Basta uma olhadela nos lugares onde o objeto usualmente estaria, solte um suspiro resignado e lance mão de outro — munido que deve estar de um substituto: a réplica das chaves, duplicata dos documentos, dos óculos, da caneta, da tesoura, do relógio. No tempo em que eu fumava, deixava maços de cigarro e isqueiros espalhados pela casa inteira.

Tão logo suspendemos a busca, tendo resolvido nosso problema com um substituto, o objeto escondido geralmente aparece: bota a cabecinha de fora e, do lugar onde o Caboclo Escondedor o colocou, fica a nos olhar para lhe contar depois como é que nos arranjamos sem ele.

Mas se desaparece também o substituto, cuidado!, o Caboclo Escondedor não tem mais culpa, pois é sabido que ele só esconde um objeto de cada vez: rendeu-se, ele próprio, a outra entidade mais terrível — o Buraco Negro, por onde desaparecem, no infinito do esquecimento e do nada, os objetos definitivamente perdidos.

Neste Buraco Negro é que foram parar aqueles brinquedos de infância nunca mais reencontrados; aquele livro sumido para sempre da nossa estante; aquelas cartas que se perderam no porão do olvido, entre trastes inúteis e papéis velhos; especialmente aquele retrato de antigamente, um momento vivido que se apagou para sempre na nossa lembrança.

Contra o Buraco Negro, por onde nós mesmos um dia seremos sugados, simplesmente não há solução.

fernando-sabino