Foi em Londres. Eu vinha de uma reunião em que tivera a notícia da morte de um amigo no Rio.
Voltava de carro para casa e era tarde. Uma noite escura, chuvosa, permeada de neblina — dessas noites londrinas que impregnam nossa alma de tédio e abatimento. É o sentimento a que os ingleses chamam de spleen, e que não tem correspondente na língua portuguesa. Em noites assim, a nossa realidade interior se mistura à atmosfera que o fog torna ainda mais densa, apagando os contornos da vida. O silêncio ao redor de nós como que se materializa. Os movimentos se fazem em câmera lenta, como o dos peixes no mundo das águas. Somos ectoplasmas de nós mesmos, flutuando no ar, integrados à eternidade do nada.
Nesse espírito é que eu voltava para casa pelas ruas desertas, pensando na morte do amigo e na morte em si, com uma certeza de sua existência inexorável.
Extravagante foi a sensação que me veio então: a de que a morte existia, não apenas como o fim para todos nós, sem exceção, mas como alguma coisa concreta, visível, corporificada em alguém com quem eu poderia esbarrar a qualquer momento.
Naquele instante, ao voltar a cabeça, dei com ela a me olhar.
Eu havia parado num sinal vermelho, e embora não houvesse na rua o menor movimento, esperava pacientemente que ele se abrisse, como exigem as regras inglesas do bom proceder. O que me chamou a atenção foi um táxi que acabara de se emparelhar a meu carro, um pouco à frente, deixando-me lado a lado com o passageiro. Que era uma mulher.
Uma mulher já sem idade de tão velha, e ainda assim horrivelmente pintada, como um espantalho: tinha os lábios borrados de batom, duas rodelas vermelhas nas faces murchas, as sobrancelhas pinçadas, os olhos empastelados de rímel. Eu a olhava também, fascinado: mas o que era aquilo?
Foi quando ela, a dois palmos de mim, piscou um olho e franziu lascivamente os lábios numa careta, como um simulacro de beijo.
Aturdido, arranquei com o carro, como se fugisse de um filme de terror de Alberto Cavalcanti na solidão da noite. Nem esperei mais que o sinal se abrisse — com isso me arriscava a ser detido logo adiante pelo policial que em Londres está sempre presente em cada esquina. Pouco importava; o que desejava era fugir dali, como uma presença amaldiçoada. Que queria de mim aquela bruxa? Certamente não se oferecia como mulher, a velha múmia — condição que já se perdera para ela num passado sem memória. Quem era, senão a própria morte em que eu vinha pensando, materializada na forma decrépita de uma megera? Senti um frio na espinha ao ver, pelo espelhinho, o táxi à minha retaguarda seguindo na mesma direção. Acelerei, para perdê-lo logo de vista.
Em pouco percebi, aliviado, que ganhava distância e ele desaparecia na cerração.
Eu morava numa rua meio remota, ao norte de Londres, e à noite o lúgubre caminho para a minha casa passava até por um velho cemitério no pátio de uma igreja. Ao chegar, fui direto para o quarto no segundo andar, disposto a espantar de mim a lembrança daquela visão.
Só quando me preparava para dormir me lembrei que não havia apagado a luz da sala, lá embaixo. Desci de pijama, e fui até a janela para fechar a cortina.
Fiquei só na intenção. Ao olhar para fora, vi, em meio à neblina, parado na rua molhada em frente de casa, o táxi negro de pouco antes, com a velha debruçada contra o vidro, a boca arreganhada num sorriso para mim.
Então subi correndo e me tranquei no quarto, para tentar dormir e na manhã seguinte pensar que fora apenas um sonho.