Fonte: A volta por cima, Record, 1990, pp. 101-104.

Ouça a crônica de Fernando Sabino na voz da cantora Verônica Sabino.

Eram seis horas e a sombra dos edifícios já cobria toda a extensão da areia. Ela se deixara ficar na praia desde o princípio da tarde, naquele domingo de sol. Só agora se dava conta de que começara a escurecer, não havia mais ninguém por ali. Veio-lhe uma sensação de abandono, acentuada pelo movimento dos carros com suas luzes lá longe, nas faixas de asfalto, como num outro mundo.

Ergueu-se e resolveu dar um último mergulho, para tirar a areia do corpo. Depois, um pouco aflita, recolheu suas coisas e vestiu a saída de praia, que logo se colou à pele molhada, acentuando as formas que o biquíni deixava à mostra. E foi para casa, a dois quarteirões dali.

Ia tomando a direção da entrada de serviço, acabou se decidindo pela porta principal do edifício, que era o caminho mais curto. O porteiro não estava em seu posto, devia andar lá pela garagem.

Não saberia dizer de onde ele surgiu: o certo é que deu de repente com um rapaz de terno e gravata, já no vestíbulo, abrindo gentilmente a porta do elevador para lhe dar passagem. Teve tempo de notar apenas a sua palidez. Não era muito experiente para os seus dezoito anos, mas sentiu que alguma coisa estranha estava para acontecer. A voz dele soou confidencial:

— Que andar?

— Último — ela agradeceu com um movimento de cabeça.

Ele apertou o botão do último andar. Não apertou o dele — ela reparou, entre curiosa e apreensiva: o último andar tinha só um apartamento, onde morava com os pais e os dois irmãos. Que iria ele fazer lá?

Mal se ajeitara naquela postura impessoal de quem se vê com um desconhecido, o rapaz tocou a emergência, parando o elevador entre um andar e outro. E tirou do bolso do paletó uma navalha.

— Não precisa ter medo — falou, em tom velado: — Não vou te fazer mal.

Ela não podia desviar os olhos da navalha aberta, imóvel à altura do seu pescoço. Quis falar, a voz lhe faltou. Sentiu que ele tocava seu corpo com a mão livre, acariciando-a desajeitadamente. Os dedos dele deslizavam nervosos por sua perna. Ele agora estava às voltas com a própria roupa, e ela não podia ver o que ele fazia, no silêncio marcado de respiração opressa. Sem coragem de olhar, imaginava que ele já estivesse descomposto, e não era apenas a náusea o que lhe arrepiava a pele: quando ele se encostou, pressionando o corpo contra o seu, sentiu um calafrio como lhe causaria o contato de um batráquio. Fechou os olhos e esperou, certa de que ia desmaiar, sob aquele sopro que se acelerava junto a seu pescoço. Mas foi um instante apenas e logo ele se recompunha, o elevador voltava a subir. Ouviu a voz trêmula sussurrando ao seu ouvido:

— Pensou que eu ia te matar?

Abriu os olhos: ele sorria, já tendo guardado a navalha, e lhe oferecia um lenço que recusou, repugnada. O elevador se deteve.

— Chegamos — anunciou ele, como se nada houvesse acontecido.

Era um passageiro qualquer, um vizinho cortês que lhe abria a porta para que ela saísse. Não ousou olhá-lo ao passar por ele. Correu até o apartamento, apertou a campainha e bateu na porta, tomada de uma crise de choro. Quando vieram abrir, o elevador já havia descido.

— Que foi que houve? Todos acorreram, irmãos, pai, mãe:

— Que aconteceu com você, minha filha?

Ela só fazia soluçar, apontando para fora. Balbuciou enfim algumas palavras, depois que lhe trouxeram um copo d’água. Cada um mais ansiado que o outro, curvados sobre ela:

— Assaltada? 

— Com uma navalha? 

— Você está ferida? 

— Fez alguma coisa com você?

— Não sei, não sei... — ela se limitava a repetir, em prantos.

— Espera, deixa ela falar.

— Fez... Não sei... Deve ter me seguido desde a praia...

— Também, andando assim na rua, quase nua! — censurou um dos irmãos.

A mãe interveio:

— Já basta o susto que ela passou. Escuta, minha filha, você reparou se ele...

— ... avisar à polícia — decidiu o pai. 

— Mas então ele ainda deve estar aqui por perto! – lembrou de repente o outro irmão.

Precipitaram-se todos até a varanda e se debruçaram.

— Tem um cara parado olhando para cá. Será que é ele?

— Não pode ser ele. 

— Seria muito atrevimento. 

— A esta altura já deve estar longe.

— Aquele deve ser outro tarado — pilheriou um dos irmãos, ninguém achou graça.

A jovem se dirigiu à varanda para ver. Deram-lhe lugar no parapeito e ela se debruçou, olhou para baixo.

Era ele.

— É ele sim — exclamou, arrebatada. — E está olhando para mim.

Junto ao meio-fio, o rapaz parecia esperar apenas que ela aparecesse lá em cima. Os irmãos correram para o elevador, na esperança de alcançá-lo. Ele ficou ainda um instante a olhá-la, depois lhe acenou com a mão. Como se um fio invisível ligasse a mão dele à sua, ela acenou em resposta, num gesto tímido, sentindo o absurdo que era aquilo, despedir-se dele assim. Somente então ele caminhou em direção à esquina em passos rápidos. Quando os irmãos surgiram lá embaixo, desarvorados, já havia desaparecido.

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