Lá iam os dois amigos muito satisfeitos da vida. Haviam tirado o sábado para ver, no interior do estado do Rio, o terreno de um deles, que o outro queria comprar. Em Niterói, tomaram um táxi e lá se foram. Muito satisfeitos da vida.
Era a semana do julgamento, naquela cidadezinha, de rumoroso crime ali ocorrido — desses que marcam época, por envolver pessoa de sociedade: a mulher tinha desaparecido, o marido era acusado de havê-la matado. Enquanto seguiam estrada afora, o rádio do táxi transmitia do tribunal do júri todos os lances do sensacional acontecimento, como uma partida de futebol.
Tanto escutaram que ao chegar a seu destino, já empolgados pelo caso, se detiveram num botequim para uma cachacinha, enquanto comentavam:
— Para mim ela não morreu: fugiu com o amante.
— Fugiu nada: assassinada pelo marido, isso sim.
E os dois amigos bebendo, esquecidos do tal terreno que um deles queria comprar do outro. Pediram uma cerveja para ir rebatendo a cachacinha:
— E o cadáver, que não apareceu? Você já viu assassinato sem cadáver?
— É mole dar sumiço num cadáver. Só dissolver em ácido.
— Sem testemunha, sem nada! Sempre tem alguém para ouvir o tiro.
— Pode não ter sido com tiro — e o outro fez um gesto com as duas mãos crispadas, como se apanhasse no ar um frango e o esganasse.
— Não estou entendendo.
— Assim... — o que falava segurou o companheiro pelo gasganete, foi apertando.
Quando deu pela coisa, o outro estava de cabeça caída e pescoço mole: como um frango morto. Derreado na cadeira definitivamente estrangulado.
Horrorizado com o que fizera, o novo assassino sacudiu sua vítima, chamou pelo nome, pediu, implorou, e nada: o outro não dava sinal de vida.
— Matei meu amigo! — berrou, em pranto. E saiu desatinado pela rua. Perguntou a um menino que vendia amendoim na esquina onde era a delegacia de polícia.
— Logo ali — o menino apontou com o beiço o outro lado da rua.
— Seu delegado, matei meu amigo! — foi falando ao entrar, transtornado: — Meu melhor amigo!
— Delegado não: comissário. O delegado está fora, em diligência. Só volta segunda-feira.
— Mas eu não posso esperar até segunda-feira! Acabo de matar um homem, sabe lá o que é isso?
— Do jeito que você está, não é capaz de matar nem uma barata. Me conte essa história direitinho.
Contou ao comissário a história direitinho e entre lágrimas. O comissário, impassível, tomou a confissão por termo, mandou que ele assinasse. E meteu-o no xadrez:
— Agora aguenta aí e espera o delegado voltar, que até lá você melhora.
O comissário ia dar um pulo até o local do crime, quando irrompe delegacia adentro a própria vítima:
— Cadê meu amigo? Por que prenderam ele? Que arbitrariedade é essa?
— Calma, moço — o comissário impôs logo a sua autoridade. — Senão vai em cana também. Não foi você que ele matou?
— Matou como? Tenho cara de morto?
— Morto não digo, mas está com uma cara...
— E daí? Exijo que o senhor solte o homem.
— Exige uma ova! Mais uma e você também não sai mais daqui: autuo por desacato. Ele confessou que matou, está confessado.
— Mas ele não pode ter me matado, se continuo vivo!
— Tentou matar, então. Tentativa de homicídio, dá na mesma.
— Tentou matar coisa nenhuma. Só me pegou assim pelo pescoço... — e já ia fazendo o mesmo com o comissário que, experiente, se esquivou. — Ele é lá de matar alguém? Solte o homem, delegado.
— Delegado não: comissário.
E não deu mais conversa: soltava uma ova! Tentativa de homicídio, e das boas, com confissão lavrada e tudo. Agora não podia voltar atrás.
— Se manda daqui moço. O outro fica. Não sei onde estou que não te encano também.
Pelo sim, pelo não, a vítima resolveu se mandar. Já não estavam condenando um marido como assassino, sem o cadáver da mulher? Justiça hoje em dia é assim mesmo, não convinha facilitar.
Foi ao telefone público e passou o resto do dia tentando localizar no Rio um advogado seu conhecido. Ainda que o telefone funcionasse, o que não foi o caso, seria inútil, pois todos os advogados, como os médicos, geralmente foram passar fora do Rio o fim de semana quando a gente mais precisa deles.
Instalou-se no hotelzinho local, onde ficou até segunda-feira, aguardando a volta do delegado. Não se atrevia a ir visitar o amigo, temendo que o comissário o pusesse no pau-de-arara para confessar ter sido estrangulado por ele. Mas lhe mandava recados pelo menino do amendoim, também já seu amigo:
— Diga a ele que não confesse mais nada, que estou cuidando do caso.
Mandava-lhe também cigarros, sanduíches e amendoins. Cachaça não, embora ele pedisse: o comissário não permitia.
Na segunda-feira o delegado, depois de ouvir a história, quis soltar logo o preso. Só que a essa altura entrava na dança o juiz da comarca, que não ia muito com a cara do delegado: o comissário tinha razão — confessou, está confessado, pombas! Agora era instaurar processo.
Que não promete ser tão sensacional como o do outro assassinato sem cadáver, mas em todo caso...