Fonte: A volta por cima, Record, 1990, pp. 190-192.
A moça ia no ônibus, sentada no banco da frente, de costas para a janela. O homem estava no terceiro banco do lado oposto. Tinha as pernas separadas ao peso da barriga e sentava-se curvado para que os braços curtos alcançassem a haste de ferro do encosto dianteiro, prevenindo-se contra possíveis solavancos.
Intrigada, a moça não desviava dele os olhos.
Dava para observá-lo bem, apesar da cabeça de outro passageiro que às vezes se interpunha. Convenceu-se: era ele mesmo. Pôde então enquadrá-lo com nitidez na lembrança que lhe ficara. E se acomodou alegremente ao exercício de recordar.
Assim curvado para a frente era como se ele estivesse diante do piano antigo, em cuja cartilagem exposta os dedos ágeis se insinuavam. Dó, ré, mi, fá — a moça ouviu bater. A menina achava graça, querendo mexer também. Agora toca nesta. E nesta grossa. A dança dos martelinhos de feltro, o movimento dos pedais, como tendões, fá, sol, lá, si... O ônibus parou.
Engordara, e havia envelhecido. A roupa também não era a mesma: o colete xadrez e o paletó surrado, com bolsos largos de onde emergiam pequenas ferramentas... Ah, e o anel no dedo, uma cara de prata... Caveira? Não, uma cara de hindu com dois olhos de pedra vermelha.
Olhou para a mão: lá estava o anel.
A moça encostou-se no banco e deixou que a cabeça do outro passageiro anulasse completamente o homem. Ele tinha um nome. Agora, satisfeita porque já não havia mais dúvida, o anel de prata, ela temia ser reconhecida. E depois, sim, havia uma caixinha de música no meio das suas lembranças. Uma caixinha de música que ele lhe dera, não funcionava, então ele havia levado para consertar e nunca mais trouxera de volta. Isso ela não podia perdoar. Será que ele se lembra de mim?, se interrogava, distraída no mundo adulto do ônibus em viagem.
Voltou a espiar o homem. Os olhos azuis do homem. Afinar piano não é para qualquer um, a mãe costumava dizer, e somente ele... Seu Hipólito? Gregório?
A cabeça do outro passageiro sumira: havia descido do ônibus e a moça não reparara. Agora podia ver tranquilamente o homem. E o afinador de pianos também pôde ver aquela moça que o olhava — surpreendido, sorriu para ela. Pensando em cumprimentá-lo, ela esperava, tímida e ansiosa, agora atrás da aba do paletó de um passageiro que viajava em pé: ele a havia reconhecido.
Mas bem-vestido daquela maneira? O terno limpo e bem-passado, gravata de seda, barba feita, sapatos engraxados — examinou-o desconsolada e voltou a fitar os olhos azuis cercados de rugas e bondade: era agora um velho e devia estar bem de vida. Com certeza não afinava mais pianos.
O ônibus tornou a parar, alguém desceu. Ele podia enfim ver da cabeça aos pés aquela menina que brincava junto ao piano, pensava ela, e que um dia... A moça levantou-se e deu o sinal. Muitos anos haviam passado.
Encaminhou-se para a porta e, antes de descer, olhou pela última vez o grande afinador de pianos de sua infância. Então encheu-se de coragem e fez-lhe um cumprimento de simpatia, perdão pela caixinha de música, reconhecimento e despedida.
Saltou do ônibus e só depois de ter caminhado até a esquina percebeu que ele saltara também e vinha em sua direção. Deteve-se, perplexa:
— O senhor se lembra de mim? — perguntou com força, quando ele enfim se aproximou.
— Lembro... Como não? — ele respondeu com doçura e era seu Gervásio, o afinador de pianos!
— Tanto tempo — a moça olhava para o anel.
A mão se ergueu, macia, tocou-lhe o braço:
— Escuta, meu bem — e ele se inclinou para ela, olhando-a nos olhos: — Tenho um compromisso na cidade e não posso me atrasar. Além disso, francamente, não saberia assim de repente aonde levar você a esta hora do dia. Mas se não se incomoda, me dá seu telefone e logo mais à noite...
Ela o olhava, estarrecida. Sem uma palavra, voltou-se e foi caminhando rápido em direção à sua casa.
O encontro com o afinador de pianos de sua infância nunca chegou a se transformar em mais um conto na obra futura da moça, que se chamava Clarice Lispector.