Alguns anos atrás ele tocava na orquestra do Copacabana, e era excelente pianista. Um dia, porém, chamou o diretor:
— Não posso continuar tocando aqui. Está caindo um pozinho na minha cabeça.
— Pozinho? Que história é essa?
Não sabia explicar o que era: quando começava a tocar, desprendia-se pó do teto mesmo em cima de sua cabeça — devia ser caliça.
— Talvez vibração do som. Sei lá: só sei que, quando toco determinadas notas, começa a cair pó.
O diretor ficou apreensivo: Os outros músicos jamais se tinham queixado disso. Mandou fazer uma inspeção no teto, mandou que a orquestra tocasse em todos os tons durante o ensaio, e nada de pó. Ele sempre se queixando:
— Estou dizendo ao senhor: basta eu tocar certas notas que começa a cair pó. Quer ver?
Sentava-se ao piano, começava a tocar. De súbito saltava, triunfante, passando a mão na cabeça:
— Não falei? O senhor está vendo?
O diretor não via nada, mas concordou em passá-lo do grill para a boate assim que mudassem o show.
Foi inútil: também lá caía um estranho pozinho do teto, mesmo em cima da sua cabeça, tão logo ele se punha a tocar.
Somente então se pode chegar à definitiva conclusão de que o homem estava era ficando maluco. Foi internado numa casa de saúde, submetido a tratamento. Meses depois reapareceu, aceitou emprego numa estação de televisão. Fazia acompanhamentos, era pau para toda obra.
— Parece que está completamente curado — diziam todos.
Certa noite, porém, designaram-no para ocupar o lugar do pianista da orquestra, que não havia comparecido. A horas tantas ele se levanta, sem nenhum aviso, interrompendo a execução em pleno programa: ficou tentando arrastar o piano, mudá-lo de lugar.
— Que é que houve?
A câmara foi rapidamente desviada, a execução se encerrou de qualquer maneira. E o produtor do programa veio reclamar, furibundo:
— Que molecagem foi essa?
— Não foi molecagem: é que eu...
— Não vai me dizer que começou a cair um pozinho na sua cabeça.
— Justamente. O senhor pode não acreditar, mas foi justamente o que aconteceu.
O produtor ergueu as mãos para o céu:
— Pronto: endoidou de novo.
O clarinetista da orquestra veio em ajuda do colega:
— Não é por falar, mas eu tive a impressão de que estava mesmo caindo um pozinho na cabeça dele.
Antes que a solidariedade se generalizasse, o próprio pianista, desgostoso, deixou o emprego. E acabou deixando também o Brasil, deixou tudo, embarcou para a Argentina.
E hoje vive em Buenos Aires, muito feliz da vida, tocando música brasileira para os portenhos, num bar do qual se tornou a maior atração. De vez em quando aparece um patrício e ele vem conversar, pedir notícias.
— Sinto muita saudade daquilo lá — confessa, nostálgico: — Mas não volto para o Brasil nem por um decreto: lá cai muito pó na cabeça da gente.