A viagem de avião até Klagenfurt, no interior da Áustria, durou quatro horas e meia. Depois foram mais três horas de ônibus até cruzarmos a fronteira. E chegamos a Bled, uma pequenina cidade de veraneio à beira de um lago, num perdido rincão da Iugoslávia, onde se realizaria o congresso anual do Pen Clube. Eu fora incluído na delegação inglesa, já que morava em Londres — mas como brasileiro, é claro.
Era noite quando, já instalado no hotel, desci até a portaria e perguntei pelos outros. Perguntei em inglês. O gerente do hotel, também em inglês, me informou que os demais escritores tinham ido jantar no restaurante do lago, onde me aguardavam. Como eu iria até lá? — Fácil — disse ele com um sorriso: era só tomar um táxi ali mesmo na porta do hotel.
Sorriso irônico? sarcástico? ou apenas amável, com aquela amabilidade profissional dos gerentes de hotel? O certo é que senti naquele sorriso algo de estranho, que na hora não soube identificar, mas que mais tarde concluí ser um sorriso simplesmente diabólico.
Sim, tomei o táxi como ele recomendara — estacionado em frente ao hotel, como se estivesse ali especialmente para mim.
Não havia luz; só quando o carro já beirava o lago, e a lua estendeu sobre a água uma esteira luminosa, pude distinguir o motorista. Era uma mulher.
E que mulher! Vista por trás, parecia uma macaca: cabelos curtos, ombros largos, braços retesados segurando o volante. Uma espécie de uniforme de motorista dava-lhe um ar de sargento. Principalmente no instante em que se voltou para mim e desferiu uma pergunta em palavras duras como pedras. Claro que não entendi uma só.
— Do you speak English? — perguntei, no tom mais delicado possível.
Não, ela não falava inglês. Nem francês, nem italiano, nem espanhol. Ignorou minhas perguntas e continuou a insistir na sua. Eu me limitava a sacudir a cabeça, com um sorriso idiota, deixando claro que me era impossível entender. E ela a despejar palavras em cima de mim, não sei se em servo, croata, macedônio ou esloveno, que são as línguas oficiais da Iugoslávia, sem mencionar os inúmeros dialetos.
Acabei perdendo a paciência e respondendo em bom português:
— Não adianta, boneca: você pode falar o que quiser, que está perdendo seu tempo.
Ela parou o carro, virou-se para trás e descarregou nova saraivada de sons guturais. Não deixei por menos:
— Toca esse carro; sargentão! Tem cabimento a gente ficar aqui parado no escuro?
Era uma espécie de estrada deserta, iluminada apenas pela lua sobre o lago. Ela não parecia querer sair dali. Certamente estava perguntando onde eu pretendia ir — pensei então. Sejamos sensatos: há palavras que são internacionais. Restaurante, por exemplo era uma delas — e não devia haver mais de um por ali:
— Restaurante. — experimentei, escandindo as sílabas e variando a pronúncia: — Restorã. Réstr’an. Ristorante.
Ela ignorou o meu esforço e continuou parada. Outra palavra universal era hotel — como alternativa, ela poderia levar-me de volta:
— Hotel — falei então: — Hotel. Hótel. Hotele.
Nada. Ela fazia questão de não me entender. Agora se voltara para a frente e limitou-se a ficar rosnando, enquanto tamborilava com os dedos nervosos no volante. Conformado, acomodei-me no assento, cruzei as pernas, acendi um cigarro.
— Está bem, sua vaca: vamos ver quem é mais teimoso.
E assim ficamos. De súbito, ela fez algo surpreendente: abriu a porta e saiu do carro. Pensei que ia fugir, deixando-me ali sozinho, mas vi que tinha ido pedir auxilio a um cidadão que vinha passando. Saltei também do carro, fui até lá. O homem, um tipo rústico com ar de camponês, sacudiu a cabeça, aparvalhado ante o que a mulher lhe dizia, respondeu qualquer coisa na mesma língua.
— Do you speak English? — perguntei ainda, mas era inútil, ele já se afastava.
A mulher voltou para o carro. Tive medo de que partisse e me deixasse ali para sempre — me precipitei e entrei antes dela.
O tempo passando e nós naquela situação ridícula. De vez em quando ela me dirigia um grunhido, eu respondia com outro. Não sairíamos dali nunca mais. O camponês já se perdera na escuridão, não aparecia mais ninguém.
Eis que diviso um vulto vindo de longe, recortado pelo luar. Uma mulher? Firmei a vista: era um padre — pude distinguir, quando ele se aproximou do carro: um velho padre de batina e tudo, com aquele ar clerical de antigamente, de pároco dos romances de Bernanos. Certamente falava francês, ou pelo menos alguma língua de gente. Alvoroçado, saltei do carro, abordei-o:
— Parlez-vous français?
Ele sacudiu a cabeça negativamente, com um sorriso de escusa.
— Inglês? Espanhol? Italiano? — Ainda sacudindo a cabeça, ele me respondeu... em latim!
Em desespero de causa, perdi a vergonha: fui juntando pedaços de palavras, com farrapos de lembranças do meu tempo de ginásio, qui quae, quod, e mandei brasa num latinório macarrônico:
– Ave, pater, demando adjutorium. Periculosa est situatio mea, famelico sum, per favore dicat mulier mechanicam necessitate mea transportatur ad restaurantem lacustrem aut retornare albergum. Gratia, pater!
O padre entendeu tudo: num instante explicou à mulher na língua deles o meu destino, mandou que me levasse. Ela chegou a sorrir! E lá fomos nós, ela falando sempre, mas eu pouco estava me incomodando, orgulhoso com o meu conhecimento de latim.
Quando chegamos, alea jacta est! era tarde da noite, o restaurante estava fechado. Retornamos ao hotel e fiquei sine cenare.