Margareta e Gabriela, esposa e filha de Otto, Berchères-sur-Vesgre, França, 1976. Foto de Otto Stupakoff. Coleção Otto Stupakoff/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Homem sofrido, Lima Barreto teria ainda mais motivos para se lamentar, pois nasceu numa sexta-feira, 13, só lhe faltando ser agosto. Mas não achava que a circunstância lhe trouxera azar. Se trouxe, a má sorte terá sido contrabalançada pela fortuna de haver nascido num mês, diz ele em “Maio”, no qual “as ambições desabrocham de novo” e se produzem “revoadas de sonhos”. Poderia acrescentar que se beneficiou também do fato de ter vindo ao mundo num ano, 1881, assinalado, como raríssimos outros, por algarismos que formam capicua, aquele número que se pode ler também de trás para diante. Descendente de africanos, o melhor presente do menino Afonso Henriques, no dia dos seus sete anos, um domingo, foi um convite do pai para caminhar com ele até o Largo do Paço, onde se comemorava a assinatura de uma lei, dita “áurea”, que abolia a escravatura.
Embora nascido numa sexta-feira, Lima Barreto não chegou a tomar esse dia como título de algum escrito. Tampouco o fizeram seus confrades reunidos neste Portal. Nem sexta nem quinta, por mais santas que ambas sejam, uma vez por ano. Menos inspiradoras ainda foram para esse pessoal a segunda, a terça e a quarta-feira. Já o domingo... bem, só de Rubem Braga há aqui cinco crônicas assim batizadas, e mais uma com o substantivo no plural. Na obra dele, o dia de descanso do Criador dá de goleada no sábado, que comparece três vezes.
Fiquemos com um dos cinco, com aquele “Domingo” em que o dia é apresentado como sendo “excelente para a alegria”. Com a palavra o Sabiá da Crônica: nele, “os homens gordos ficam mais felizes, porque não há pressa; e os magros, depois do almoço, sonham que estão engordando discretamente". Já “o marido e a mulher se enganam muito suavemente no domingo – pois, como não podem inventar negócio nem hora de dentista, eles se enganam fazendo-se crer mutuamente que estão felizes em passar o dia inteiro juntos: quando vem a tarde, eles parecem irmãos, e têm paz no peito".
Há momentos, porém, em que a vida arrasta o Velho Braga para o lado oposto, e o leva a concluir, como em “Aconteceu”, que “ser feliz dá muito trabalho e muito aborrecimento” – e em troca de quê? “Do suspiro sonolento numa tarde de domingo; de um sentimento de segurança afetiva; a amizade velha, em meio à inflação de sentimentos, se valoriza sempre, como um bem imóvel”, vai ele enumerando, para concluir com deliciosa, irresistível ranzinzice: “Não tenho a menor dúvida, meus queridos senhores, de que a vida é triste; do alto de meus 44 anos esta melancolia vos contempla".
Antônio Maria, como Rubem Braga, também tem o seu “Domingo”, e nele saúda um resgate tão inesperado quanto precioso: fazia anos que este dia era o mais “sem graça” da semana – e não é que um deles, assim do nada, veio lhe mostrar de novo o “bom ar” e a “alegria” que suas 24 horas continham na remota meninice do cronista? “Que bom ser domingo outra vez, depois de trinta anos!”, festeja o Maria. O mesmo sentimento vai impregnar outro texto seu, cujo título só podia ser “Alegria”, palavra que nele se repete uma dezena de vezes. Mas não qualquer uma, adverte ele, e sim aquela “que dispensa dúzias de rosas, cestas de flores e caixas de orquídeas”, alegria “sem álcool antes e sem a menor razão para álcool depois”, uma “alegria que, tirante Deus, desliga de todas as coisas.”
Voltemos ao Braga (o que nunca deixa de ser gratificante), e, com ele, a “Sábado”, crônica na qual está feliz como se domingo fosse, ou até mais. Não que lhe aconteça algo a requerer trombetas. Bem ao contrário, o que se passa são apenas miudezas do cotidiano: “Chupo uma laranja e isso me dá prazer”, descreve o Braga. “Estou contente. Estou contente da maneira mais simples – porque tomei banho e me sinto limpo, porque meus braços e pernas funcionam bem; porque estou começando a ficar com fome e tenho comida quente para comer, água fresca para beber. Nenhuma tristeza do mundo, nem do meu passado, me pega neste momento".
Entre o sábado e o domingo, Paulo Mendes Campos fica com os dois. E num paradisíaco “Fim de semana em Cabo Frio” o seu contentamento vai ao ponto de passar da conta: “Deus me abandonou à minha felicidade”, dramatiza ele, hiperbólico. “O sol, o azul, o à toa, essas coisas estraçalharam meus fantasmas.” E clama, depois de reclamar: “Tudo, Senhor, menos ser feliz”. Não menos deleitoso para ele é certo dia em que “O sol funciona esplêndido...”, dessa vez sobre a praia de Ipanema. “Custa supor”, devaneia o cronista e poeta mineiro, que naquele mesmo instante saturado de prazer a existência se distribua também, “cotidiana, em guichês, em escritórios, repartições, filas, cemitérios da vida.” Apenas a presença de “pequenos vermes na areia” impede que seja “alarmante” a paz que Paulo está sentindo.
Seu cupincha Otto Lara Resende não carece de sol para aquecer o coração e entrar na posse de um naco de felicidade. Recolhido em sua toca, na Gávea, a ele basta ver cair uma “chuvinha manhosa”, que num canto da memória desenterra uns versos: “Chove chuva choveirando”. “Quem escreveu essa bobagem?”, pergunta-se. Delicado, talvez tenha preferido não nomear o autor, seu amigo Oswald de Andrade. Naquele momento, diz o Otto em “Entreato chuvoso” (crônica, atenção, não apenas para ler, mas para também ouvir, aqui, na voz de Bruno Cosentino), o que conta é desfrutar “o friozinho bom pra ficar no borralho”, para “reler o que nunca li”, imerso “na doce e inquieta paz” que, em pleno fogaréu do verão, a meteorologia teve a gentileza de lhe proporcionar.
Também Clarice Lispector não pedia muito para que um parêntese de alegria pudesse abrir-se em seu coração anuviado. Quando, já madura, lhe perguntaram pelo primeiro livro que leu, lá no fundo de sua infância no Recife, ela inundou-se de entusiasmo retrospectivo – e fatiou a resposta, de modo a que nela coubesse, não uma, mas um punhado de epifanias literárias, distribuídas no tempo e reunidas em feixe na crônica “O primeiro livro de cada uma de minhas vidas”, na qual a mesma paixão de leitora faz conviverem descobertas fundadoras como O Patinho feio de Hans Christian Andersen e O lobo da estepe de Hermann Hesse.