O sol funciona esplêndido sobre a praia de Ipanema. O espaço se abre larga, largamente. Custa supor que a existência se distribui, cotidiana, em guichês, em escritórios, repartições, filas, cemitérios da vida. A epiderme se satisfaz de si mesma, alimentando mil insetos, ideias, sensações, lembranças...

Dispomos dos instrumentos essenciais a alguns momentos de felicidade: a persistência do coração, mergulhando em sangue vivo, a persistência do ar, da água, elementos indispensáveis e suficientes ao mistério linear de viver e sentir. Não fosse uma gaivota faminta, nem perceberíamos este espinho interior, denunciando as vastas solidões que dominamos, sofrimento, mágoa, melancolia.

Há pequenos vermes ocultos na areia para que a nossa paz não seja alarmante. As obrigações a cumprir, os amores a sonhar, os livros a escrever, formam figuras abstratas, que se misturam, se deformam e se quebram. Baste o azul. Baste a escura alga do sexo dormindo mal dormida nas profundezas submarinas.

Agora penso em Ícaro a despenhar-se de um rochedo, legando ao mundo um de seus fracassos definitivos. Às vezes, nem penso: as nuvens me atrapalham, os ventos me dispersam em outras paisagens que já vi, os aviões parecem conferir o meu corpo, que aguarda deitado os monstros do mal.

Amo esta distância verde e sem frotas, este cheiro de sal, ainda não perturbada pelos vasos de guerra. Seria absurdo se um submarino laminado surgisse à tona destas águas e nos destruísse, a nós que apenas pedimos uma intimidade maior com os bichos e os mistérios do mar.

Jovens pescam, arranhando a pele na rocha, onde as lagostas adormeceram. Mais baixo está o mundo dos místicos, dos que amam as profundezas incríveis e indecifráveis.

Uma criança urina sobre as vagas mansas. Longe os navios fazem o belo comércio marítimo que, aqui da praia, perde o seu rigor cruel na lentidão dos barcos teimosos. Os transatlânticos viajam a um mundo melhor e restrito. Mas um dia haverá a reforma marítima, distribuindo os mares entre todos os homens. Então nascerá para todos a estrela d'alva.

paulo-mendes-campos
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