Fonte: coluna "Jornal de Antônio Maria", Última Hora, de 15/12/1960.
Não sei se houve quem experimentasse a felicidade de ir para alguém ou algum lugar, com alegria. A alegria de que eu falo não deve ser confundida com o prazer formal, o prazer-palavra, com que se aceitam os convites. É alegria intata, de alma e corpo, dessa alegria que faz as pessoas se sentirem leves, intemeratas e bonitas. Uma alegria que substitui o almoço, o jantar e o banho. Que faz esquecer o Passado, todos os passados, a ponto de o paciente se perguntar: “Quanto tempo faz que houve ontem”? E, no tom de quem lamenta uma estiagem mais longa: “Engraçado, nunca mais teve ontem”. Ou então, com a maior simplicidade, escrever ontem com “h”: hontem. Que coisa estranha, a palavra hontem!
A alegria a que eu me refiro é aquela de só haver, no mundo, dois estágios e, entre eles, um só caminho. Uma alegria que dispensa dúzias de rosas, cestas de flores e caixas de orquídeas. Alegria sem álcool antes e sem a menor razão para álcool, depois. Alegria que, tirante Deus, desliga de todas as coisas. Da pátria, principalmente. Sim, o paciente esquece o Hino Nacional, a data da independência e a da Proclamação da República. Se o mandarem dizer: “Ema, ema, ema” ― ele diz: “Ema, ema, ema”. E se, logo depois, lhe perguntarem: “Como é o nome da clara do ovo”? Ele responderá: “Gema”. E seguirá alegre, de mãos vazias, levando no peito, Luís de Camões: “É ir ter com quem nos mata, lealmente”. E, lá chegando, desejar a morte com fervor, porque ninguém sabe onde começa e de que formato é o Futuro.
Não sei se já houve quem experimentasse esse tipo de alegria. Mas, podem crer, é muito interessante.