Flor, rua São Jerônimo, Londrina-PR, 1950 década. Foto de Haruo Ohara. Coleção Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Assim como ninguém é ruim numa coisa só, um mal quase nunca vem sozinho. A constatação vale especialmente para os dias que correm, mas está longe de ser novidade. Basta ver um registro que fez Lima Barreto no ano de 1920, quando campeava ainda por aqui “um impiedosa epidemia”, fruto de vírus que ele não nomeia, inequivocamente o da gripe espanhola. Além daquela “gripezinha” (em nome da qual, aliás, tentou-se empurrar nos pulmões do povo uma inócua Grippina, que em comum com a cloroquina teria muito mais que a rima), grassava outro flagelo, o da pirataria intelectual: um “médico modesto”, conta o cronista em “O pai da ideia”, publicou artigo receitando encher o Rio de hospitais – mas ninguém passou recibo da sábia recomendação. Ninguém, salvo dois médicos badalados, o doutor Cavalcanti e o deputado Azevedo, os quais, com linguagem obesa e retumbante, se puseram a repetir o mesmo, levando um jornal carioca a lhes atribuir a autoria da ideia, com o que se enterrou “para sempre o nome do simplório doutor Mendonça".
Se não fosse àquela altura um garoto de sete anos a traquinar na sua Cachoeiro de Itapemirim, e sim o cronista incomparável que veio a ser, Rubem Braga haveria então, quem sabe, de tomar a defesa do verdadeiro pai da ideia da multiplicação hospitalar. É o que nos autoriza a pensar “O médico”, em que ele, conhecedor, “por profissão ou temperamento”, de “alguma coisa do Brasil”, tira seu chapéu para quem naquele momento lutava contra a malária – os sanitaristas e também um “pessoal humilde” igualmente engajado na batalha. Indignado, Rubem Braga faz uma avaliação que atravessará quase 70 anos para chegar, atualíssima, ao Brasil da Covid-19: “Só um débil mental” não estará “profundamente pessimista diante dos espetáculos diários de desonestidade, de tolice, de mentira e vaidade de nosso alto mundo político e social.”
Paulo Mendes Campos é outro que saberia reconhecer o justo valor de alguém como o doutor Mendonça. Em “Gente boa e gente inútil”, ele homenageia, entre os primeiros, cientistas abnegados – alguém como um conhecido seu, de Belo Horizonte, que, recém-formado em anatomia patológica, “desistiu do futuro, largou tudo”, enfurnando-se para sempre num fim de mundo nos Estados Unidos, “claustro leigo” da ciência no qual, generoso e abnegado, optou por ser “anônimo e pobre”.
Mas voltemos ao Braga, agora como paciente. Já de poucas palavras, o cronista um dia se vê rouco, capaz de emitir não mais que “uma voz de túnel, roufenha, intermitente e infame”. Recomendações de médicos e palpites de meros curiosos não lhe faltam, mas decide não seguir nenhuma: “O remédio é falar menos e escrever mais”, explica ele em “O homem rouco”. Mesmo porque, se “a voz é feia e roufenha”, o sentimento “é cristalino, puro”.
Seu problema, de outra feita, foi uma dolorosa inflamação nos tendões do braço. “Doença de meia-idade”, minimizou o médico. “Menos mal”, resignou-se o dono do braço, que ia então nos seus 42 anos – e filosofou: “Afinal de contas, é confortável a gente ter suas doenças na época devida. Infeliz o que fica senil aos 20 ou tem caxumba aos 40”. E paciência, se a inflamação lhe provoca, em sentido literal, uma dor de cotovelo. Remédio? “Proferir, de dez em dez minutos, um grosso palavrão de língua portuguesa”. Ao Rubem Braga de “Bursite” bastava a certeza de que iria “morrer no fim da vida, e não no meio”.
Momentos bem piores passou o Sabiá da Crônica quando uma gripe o derrubou em território estrangeiro. “Minha morte em Nova Iorque”, dramatizou ele diante do termômetro que marcava 104 graus. Saber que esses graus são Fahrenheit, equivalentes a uns 40 na escala Celsius, não o tranquilizou. O que faz seu corpo arder lhe parece mais que um prosaico vírus, pois a pronúncia desta palavra, em inglês, soa assustadora: “vairâs”.
Antônio Maria não viveu situação tão aflitiva – e pode ter sido esse, exatamente, o seu maior problema num dia de febre moderada. Pouco demais para quem, em “A consolação da doença”, sonha com internação numa casa de saúde, onde esteja cercado de enfermeiras fartas em atenções e carinhos, com sua mulher a lhe correr a mão na testa enquanto diz doçuras. “Quando se está doente, mesmo que tudo não passe de uma pontinha de febre, é preciso proceder como doente”, justifica o Maria, admitindo estar saudoso de um bom impaludismo.
Somos todos, lembrou ele em “Considerações sobre a morte”, “passageiros para a morte e escalas”. Com divertida melancolia, enumera ali “coisas de matar”, como armas de fogo, e outras “de sobreviver”, como fármacos em geral. Nessa contabilidade, “as invenções para matar são muito mais numerosas e quase sempre mais eficazes”. E quando alguém se vai, a perda maior, para quem fica, não é a da presença de quem se foi, mas “os dons e as competências que se levam para o túmulo”.
Rachel de Queiroz, em “Males do corpo”, encontra algum consolo em pensar num tempo em que se vivia menos – porém, de certa forma, melhor, pois a ciência não havia ainda iluminado o inesgotável baú de nossos sofrimentos físicos. “O bem mais precioso não é a saúde propriamente dita, mas a sua presunção”, acha Rachel. “Porque o melhor de ser sadio é não pensar em doenças” – “e pode-se lá ser sadio sabendo-se que o mal nos espreita a cada instante?”
De todos os cronistas do nosso Portal, Otto Lara Resende talvez tenha sido aquele que mais frequentemente sucumbiu à gripe – a julgar, pelo menos, pela quantidade de vezes em que fez de vírus e bacilos as musas de escritos seus. Numa deles, “Versão atual da peste”, admitiu que, derreado, sentia-se incapaz de conviver com o semelhante. Nem mesmo de papear por telefone: “Não ligo para ninguém”, avisa ele, chegado nas delícias de um duplo sentido.
Em outra crônica, “Bula do egoísmo gripal”, Otto desempoeira uma frase do sanitarista Miguel Pereira em 1916: “O Brasil é um vasto hospital”. Bem a propósito, sem dúvida: naquele final de 1991, muito se falava no vibrião colérico, integrante mais recente de uma galeria nacional de flagelos onde figuravam, entre outros, o mal de Chagas, a esquistossomose, a leishmaniose e mesmo a lepra, há muito eliminada em outras paragens. Paradoxalmente, o cronista não queria pensar nisso, consumido que estava por algo muito menos letal, uma gripe: “Doem-me todas as esquinas do meu ser”, queixa-se ele.
Num dia de primavera, Otto Lara Resende outra vez se lembra de que a estação, sujeita a lufadas sazonais de pólen, costuma potencializar os problemas respiratórios de quem sofre de asma – e, em “Sufoco hipersensível”, se põe a arrolar asmáticos ilustres de nossas letras, como Machado de Assis, Augusto dos Anjos e Graciliano Ramos. Humilde, o cronista mineiro não se inclui na lista, embora merecesse nela figurar, uma vez que da infância, nos anos 1920, à alta maturidade, na década de 1970, ele arfou com a asma. Mais que isso até, costumava ele brincar: penou sobretudo enquanto a doença se chamou asthma, que esse th tornava ainda mais sufocante, tormento específico do qual, não a medicina, mas a reforma ortográfica de 1943, pôde dar um jeito.