Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p. 121.  Publicada, originalmente, na revista Careta, de 14/02/1920 e, posteriormente, no livro Vida urbana, São Paulo., Brasiliense, 1956. p. 217. 

Ouça a crônica de Lima Barreto na voz do pesquisador de Literatura Brasileira Ronaldo Vitor da Silva.

Tendo irrompido na capital de certo país uma epidemia de moléstia terrível que matava milhares de pessoas por dia, a junta do governo se viu obrigada a fazer o serviço compulsório de coveiros e requisitar palácios para hospitais. Um médico modesto, mas sábio, passado o flagelo, saiu de sua modéstia e escreveu num jornal ou numa revista de pouca importância um artigo simples, claro, sem arrebiques de péssima literatura pernóstica, sem fumaças de ciência e de clínica, lembrando a conveniência de se criarem mais hospitais públicos e situá-los em diversas zonas da cidade, para sempre poderem eles atender à população eficazmente, nas épocas normais e anormais.

Pouca gente leu o artigo do honesto facultativo, mas todos os seus colegas o fizeram, sem que, entretanto, nada dissessem logo.

Passa-se um mês, quando já todos estavam esquecidos das palavras do bom esculápio, sem trombetas, bulha e matinada, quando apareceu no principal jornal da cidade um artigo desmedido, escrito com o bolor de vocábulos antigos, recheado de citações e exemplos de outras terras e termos híbridos do grego e do hebraico, repetindo as sugestões do velho prático que lembrara a criação de hospitais semeados pela capital do país.

Apesar do assunto ser o mesmo, sem discrepância alguma, o nome de quem aventou a ideia pela primeira vez, cujo nome era Mendonça, não foi citado.

Na Câmara, um outro facultativo, que era deputado muito famoso pela sua clínica nas altas rodas da cidade, apresentou um projeto, calcado nas ideias do doutor Mendonça, mas não o citou, fazendo isso várias vezes com o doutor plagiário daquele, que se chamava Cavalcante.

Os jornais, pelos seus cronistas, gabaram muito o projeto e, nas suas crônicas e tópicos, não se amedrontavam em repetir os nomes do doutor Cavalcante e do deputado doutor Azevedo.

Toda a gente ficou crente de que a ideia era do doutor Cavalcante e essa convicção ainda se tornou mais forte quando apareceu uma crônica do doutor Juventa, num popular jornal noturno, atribuindo toda a glória da iniciativa aos seus dois colegas, Cavalcante e Azevedo.

Esse doutor Juventa era tido em grande conta, não por ser verdadeiramente grande em qualquer cousa, apesar de ser médico, advogado, poeta, literato, político, estrategista, etc.; era tido em grande conta por ser um homem feliz – menos com os seus doentes, diziam os maldosos.

Nada sabemos disso; e o certo, porém, é que o artigo enterrou para sempre o nome do simplório doutor Mendonça.

Assim são as coisas naquele país..

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