O homem de dantes evidentemente sofria de mais doenças do que o homem de hoje. Morria-se moço, morria-se à toa ― era a febre amarela, o tifo, a varíola, a tísica galopante, a malária, as pedras da bexiga, a hérnia, o volvo, a septicemia ― para não falar do parto, que colhia as moças como a ventania às rosas. Não se tinha aperfeiçoado a técnica cirúrgica, nem se tinham inventado os soros, as vacinas e os antibióticos.

Hoje, quase que só se morre de acidente, de crime, de coração e de câncer ― e note-se que todos os dias a medicina avança um pouco mais adentro desses dois terrenos proibidos. (Morre-se, também, de fome, um pouco por toda parte, mas isso não é culpa da medicina. É outra história que não cabe dentro desta.)

Contudo, esse conhecimento do corpo, que já transcende do círculo dos profissionais da Medicina e vai-se espalhando pelo vulgo (quem, hoje em dia, não arrisca o seu diagnóstico de apendicite, de úlcera do duodeno, etc?), criou um grande motivo de inquietação e desajuste, trazendo para o homem a preocupação constante com o seu corpo; a medicina preventiva vive a nos alertar a todo instante e a gente está sempre a se palpar, a se estudar, a se defender ― justamente porque pensa que sabe de onde é que vem o inimigo e onde é que ele pode de preferência ferir.

Já o homem de antigamente vivia muito longe desse sobressalto. Enquanto se via vivo, enquanto uma chaga mais feia ou uma dor mais forte não lhe empanasse a resistência, ele se supunha são. Um velho, no uso dos seus braços, das suas pernas e do seu fôlego, considerava-se à altura de todos os esforços e fadigas da mocidade. Ninguém lhe media a pressão arterial, ou a ureia do sangue, ou o açúcar da urina, ou lhe traçava num mapa as pancadas do coração. O velho tinha à vida os mesmos direitos que o moço, até que a moléstia ou a própria velhice o derrubassem de vez.

Até os como nós, que ainda não somos velhos: gordura não era doença, nem conhecíamos nenhum dos mistérios essenciais do nosso saco de tripas. Assim por o desconhecermos, o tínhamos por perfeito, até que ele provasse em contrário. O corpo nos seus humores e nas suas entranhas era qualquer coisa de quase tão ignoto quanto a alma; e a um como a outra deixávamos que se defendesse como Deus fosse servido.

Ah, foi um terrível prejuízo. Creio que quase tão danoso quanto o que resultou do fruto da árvore do bem e do mal. Pois se dizem que o mais precioso dos bens é a saúde, a mim me parece que o bem mais precioso é não a saúde propriamente dita, mas a sua presunção. Porque o melhor de ser sadio é não pensar em doenças nem em entranhas ― e pode-se lá ser sadio sabendo-se que o mal nos espreita a cada instante, que esta ligeira dor no braço esquerdo pode ser o sinal da crise definitiva, que este pontinho doloroso, este ingurgitamento, quem sabe é o começo do tumor, esta leve surdez é o sintoma da esclerose das artérias, este cansaço ao fim da escada é a prova de que o velho músculo cardíaco não dá mais no couro?

Velhos, então, estragamos completamente a vida dos velhos. A gente lê nas histórias antigas o caso daqueles varões que aos sessenta e muitos, setenta, e até mais, se partiam em jornadas perigosas, empenhavam-se em corpo a corpo nas batalhas, comiam como leões, amavam como Romeus, bebiam de rolar no chão ― sem que a ninguém ocorresse impedir tais façanhas sob a alegação de que se tratava de um velho. Para todos, inclusive para o interessado, o velho, enquanto aparentemente, são era o equivalente do moço, e as únicas restrições que sofria lhe eram impostas pela própria resistência.

Hoje, qual de nós é capaz de ver seu pai, avô, marido, sogro, tomar um segundo copo de vinho sem lhe falar na pressão? Quem deixaria o seu sexagenário doméstico empenhar-se numa briga? Não lhe permitimos sequer comer um naco de carne gorda sem o ameaçarmos com o colesterol! Se o homem é político, então vivemos em tremuras ― as crises permanentes do ofício nos parecem abutres a lhe roer a vida preciosa, e a cada discurso que faz da tribuna, pelo nosso gosto, o submeteríamos a um eletro, para ver se não houve alteração essencial naquele delicadíssimo traçado do coração.

Falei em sexagenário? Qual, a agonia começa mais cedo, muito mais cedo. Pois aos quarenta já sabemos que ele está dentro da faixa do câncer, aos cinquenta positivamente passou para a faixa do enfarte...

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Não, saber não é bom. Como dizia um tio meu que sabia muito e morreu cedo, a felicidade na vida é nascer burro, criar-se ignorante e morrer de repente.

E ainda tem o ditado que fala que é melhor o burro vivo que o sábio morto: para mim ainda melhor é o burro morto que o sábio vivo. Pois morre, mas não sofre por saber demais.

rachel-de-queiroz
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