Pôr-do-sol, Chácara Arara, Londrina-PR, 1949. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Você abre seu jornal, sua revista, no impresso ou no digital – e dá de cara com a surpresa ruim: cadê o meu, cadê a minha cronista do coração? Aconteceu o que se dá com qualquer escriba. Um dia, some, seja por fastio, literário ou não, seja por haver batido asas para além da imprensa, batido asas deste mundo. Nunca mais, no gênero ao menos, uma palavra daquele ou daquela de quem você, sem se dar conta, acabou docemente dependente. O consolo é saber que a criatura não se foi sem nos deixar uma “última crônica”.
Ou até mais de uma, no caso talvez sem similar de Lima Barreto. Quando ele morreu, em 3 de novembro de 1922, sua “última crônica” parecia ser Novos ministérios, estampada três semanas antes na Careta. Mas não: ainda em novembro a revista carioca desovou quatro inéditos do Lima – o último deles, Herói!, sobre o Samuel, moço que era o desgosto de seu pai, pois não pensava em outra coisa que não fosse jogar football – e que, exatamente por essa picada, acabará merecedor da admiração paterna e do ponto de exclamação que faz vibrar o título da crônica.
Fim de história? Que nada: em janeiro e fevereiro de 1924, mais de um ano, portanto, após a morte do colaborador, eis que a Careta desenterra mais quatro inéditos do falecido. Hoje, quase um século depois, talvez já se possa afirmar que a derradeira produção de Afonso Henriques de Lima Barreto no gênero foi Coisas do “sítio”. Corra lá – mas vá sabendo: nada a ver com aprazíveis propriedades rurais. Trata-se, ali, do estado de sítio, suspensão de garantias constitucionais que, decretada no final do governo do presidente Epitácio Pessoa (1919-1922), vai se estender por praticamente todo o seguinte, de Artur Bernardes (1922-1926). Algumas referências fatalmente desbotaram, assim como esmaeceram personagens outrora cintilantes, o escritor Humberto de Campos, por exemplo, ou Carlos Sampaio, o prefeito do Distrito Federal que pôs abaixo o Morro do Castelo. Mas segue vivo e saboroso o sarcasmo com que o Lima fustigava ruindades deste mundo. Ou a ironia que ele asperge nos parágrafos da citada “Novos ministérios”, quando sugere a criação de mais uma pasta, a dos “Negócios do ‘Pé-de-Meia’”, ou, num país onde existe uma Sociedade Protetora dos Animais, um similar que proteja os racionais.
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Se pudesse saber que aquela sua crônica será a derradeira, qualquer autor cuidaria para que ela, mesmo sem trombetas nem clarins, tenha o peso de um gran finale, ou pelo menos não resulte por demais trivial. Escriba organizado como poucos (dizia-se capaz de encontrar qualquer papel em seus arquivos em no máximo 40 segundos), Fernando Sabino talvez pensasse num fecho caprichado para a sua intensa atividade de cronista. O fato é que, sem ter chegado ainda à metade dos 81 anos que iria viver, e ativo como nunca, em 1963 ele escreveu A última crônica. Quase parêntese numa obra em que predominam a leveza e o bom humor, destaca-se também pela emoção sob controle. Se o texto não estiver entre os melhores de Sabino, é com certeza dos mais conhecidos em sua vasta produção.
Cronista eventual ao longo de décadas, só no final da vida Otto Lara Resende se entregou para valer a essa atividade, a convite da Folha de S.Paulo. Estreou no 1º de maio em que completava 69 anos, e apanhou o gancho jornalístico já no título da primeira crônica, Bom dia para nascer, que nomearia também a suculenta coletânea organizada após a sua morte. Em pouco mais de ano e meio, sua assinatura piscou para o leitor mais de 500 vezes. A última, em 21 de dezembro de 1992, com Águia na cabeça. A ave em questão é a de Haia, Rui Barbosa, de quem se conta um feito notável que nem todos conhecem. Poucos sabem, também, que ao escrever esse texto Otto lutava para vencer as sequelas de duas delicadas cirurgias na coluna, e que a morte o espreitava uma semana depois.
Também Rubem Braga, às voltas com um câncer que preferiu não tratar, estava na reta final quando escreveu A paz de Santa Maria de Maricá, vinheta literária carregada de poesia e graça que o jornal O Estado de S. Paulo publicará, como a “Águia” de Otto Lara, num 21 de dezembro, no ano de 1990. Fazia então dois dias que o Sabiá da Crônica tinha morrido, sozinho em seu quarto de hospital, conforme quis que fosse.
Bem mais moço que os amigos Otto e Rubem, Antônio Maria, aos 43, sabia-se doente do coração (no sentido figurado, inclusive, pois, apaixonado, vira estilhaçar-se o casamento com Danuza Leão) – mas seguia funcionando quando se sentou, em 14 de outubro de 1964, para escrever Uma velhinha, que O Jornal publicará na edição de 16, um dia após a sua morte repentina. Fala de uma criatura “bela e frágil por fora”, “magrinha”, mas que, “se a gente abrir, vai ver, tem um homem dentro”. Alguém muito parecido com o Maria, “um homem solitário, que sabe o que quer e não cede ‘isso’ de sua magnífica solidão”.
E há também os cronistas demissionários, aqueles que estarão entre os leitores de sua última crônica. Assim deve ter feito Rachel de Queiroz em 22 de janeiro de 1975, ao se despedir da famosa “última página” de O Cruzeiro que foi sua desde 1º de dezembro de 1945, quando ali chegou com sua Crônica nº 1. Sem avisar que ia embora, ela falou de Um tesouro bibliográfico: o manuscrito, com 400 páginas, “todo riscado, rasurado, emendado, sobrelinhado” do romance Til, de José de Alencar, a que tivera acesso graças ao bibliófilo Plínio Doyle, dono da relíquia. “Me afundo no grande volume vermelho”, rejubilou-se Rachel, “lendo, decifrando, adivinhando”.
Se a escritora cearense não contou que estava de partida, Carlos Drummond de Andrade fez questão de deixar claro, já no título – “Ciao” – que naquele 29 de setembro de 1984 estava pendurando as chuteiras de cronista, ao cabo de 15 anos de colaboração do Correio da Manhã e outros tantos no Jornal do Brasil, para mencionar apenas as publicações a que esteve vinculado por mais tempo desde o remoto ano de 1920. Numa bela página do JB, ao lado da crônica, lá está ele, às vésperas de seus 82 anos, no traço do cartunista Liberati, caminhando para o horizonte enquanto, sorridente, dá adeus ao leitor. É pena que Drummond (ainda?) não faça parte deste Portal. Mas nada impede que você o visite alhures, e leia o belo balanço de um grande que se inventou cronista ainda adolescente.
Dois meses depois de Drummond, o Jornal do Brasil perdeu também José Carlos Oliveira, que, tendo chegado aos 50 anos, julgou ser tempo de se concentrar inteiro em outro território de seu talento de prosador, a ficção. Sua despedida deu-se em dois capítulos. Em 30 de dezembro de 1984, “à maneira dos narradores de cordel do Nordeste”, ele compôs um acróstico em que o cronista diz adeus. “Já não tenho nada a fazer neste ofício”, justificou. Com Feliz Ano-Novo!, no dia seguinte, foi mais direto: “Nunca mais escreverei crônicas”. Parece que ele cumpriu a promessa – mas, considerando-se o precedente de Lima Barreto, não é impossível que hora dessas hipotéticas gavetas se abram e delas vá saindo um Carlinhos Oliveira que até hoje ninguém leu.
A propósito
Aproveitando o clima de despedida, o editor faz saber que este Rés do Chão, o de número 80, é o último de sua lavra. Faz questão, ainda, de trombetear o quanto lhe fez bem estar aqui desde o primeiro dia, há mais de três anos, sob o comando, no início, de Elvia Bezerra, a quem deve o convite, e, em seguida, de Rachel Valença, que a substituiu como coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles. Muito obrigado, em especial, a Katya de Moraes, parceira capaz de injetar saber & sabor, além de leveza e graça, naquilo que sem ela seria só trabalho. Sorte do novo editor, o jovem cronista e pesquisador Guilherme Tauil, conhecedor, como poucos, da crônica brasileira, em especial a de Antônio Maria, cuja obra (e vida), esmiuçada numa recente dissertação de mestrado, ele peneirou e acondicionou na irretocável antologia Vento vadio.