Fonte: Bom dia para nascer, Companhia das Letras, 2011, pp. 373-375. Publicada, anteriormente, na Folha de S. Paulo, de 21/12/1992.

Ninguém ousou até hoje fazer a sério uma associação, pálida embora, entre Dreyfus e Collor. Os cinco advogados franceses não insinuaram, nem sugeriram, tamanho absurdo. O outro, palpiteiro que andou por aqui, estava mais para socialite do que para boca de foro. Daqui a pouco, menos de dois anos, o centenário do processo Dreyfus será lembrado em todo o mundo. Como os processos de Moscou deste século e outras ferozes iniquidades. 

O capitão Dreyfus foi preso a 15 de outubro de 1894. Nove semanas depois, a 22 de dezembro (data sugestiva, não?), ele foi condenado e deportado para a ilha do Diabo. Paixões postas de lado, a inocência do réu se tornou inquestionável. Virou símbolo. Só no fim de 1897 Émile Zola entrou na polêmica. Em janeiro de 1898, vinha a público o seu histórico J'accuse, um rasgo da grandeza humana. Sozinho, o panfleto de Zola lhe garante a imortalidade. 

O Brasil tem no famoso affaire o lugar de honra, graças a Rui Barbosa. Exilado em Londres, fugindo do primeiro arreganho do arbítrio militar, sai aqui no Jornal do Commercio a primeira carta de Inglaterra, em 7 de janeiro de 1895. Contra a opinião geral da França e da Europa, ergue-se a voz de Rui, solitária. Foi a primeira no mundo que se levantou em meu favor, disse o próprio Dreyfus. Bastaria esse gesto de bravura pra imortalizar a nossa Águia de Haia.

Uma coisa que me dá prazer é ver como Rui está vivo, tantos anos depois de sua morte, em 1923. Vibra ainda no ar a sua fibra de advogado. Paladino da Justiça, digamos sem receio da ênfase. Rui não nos enche o fátuo balão da empáfia. Antes, bafeja o nosso orgulho de cidadãos brasileiros. Por pior que ande o nível da autoestima nacional, a gente pode sempre se ufanar desta pátria tão maltratada. No começo da República, lá está, livre, intrépida, a voz de Rui.

Vivo, sim, e magistral, Rui é uma presença e um exemplo. Cinco, dez vezes por dia, na imprensa, na televisão, no Congresso, nos tribunais, seu nome fulgura. Entra, obrigatório, na sinonímia da Liberdade e da Justiça. Inseparável da consciência republicana de cidadania, a que vamos dando consciência prática, Rui é também o sagrado direito de defesa. O respeito aos direitos humanos. Toda a grandeza da Justiça, menos a má-fé que, no processo, é tão só chicana protelatória.

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