Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p. 576. Publicada, originalmente, na revista Careta, de 18/11/1922 e, posteriormente, no livro Coisas do reino de Jambon. São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 196.
Os dois velhos amigos desde meses que não se encontravam. Exerciam profissões diversas, em lugares afastados da cidade. Um, o Felisberto, era médico de um posto de profilaxia rural, pelas bandas de Santa Cruz; e o outro, o Teodoro, estava encarregado, como engenheiro, dos mananciais da Gávea e Jardim Botânico. Moravam nos arredores das suas repartições e raramente desciam à cidade, a não ser para receber, no Tesouro, nos começos do mês, os vencimentos de seus cargos.
Eram dois filósofos a seu modo que nada perturbava. Revoltas, exposições, discurseiras, fogos de artifício — tudo isso os deixava frios. Uma coisa, porém, estava sempre a preocupá-los: a educação dos filhos. Nenhum dos dois foi feliz com eles. Felisberto, além de outros, tinha o mais velho, Samuel, que não dera para nada. Tudo estudara e nada aprendera. A sua mania era o tal de football. O pai lutou em vão para que metesse no bestunto algumas noções com que ele pudesse ser, ao menos, amanuense. Era inútil. Desde de manhã até à noite, não fazia outra coisa senão dar pontapés na bola, em discutir corners e o mérito dos rivais. Não ganhava dinheiro; mas, graças à mãe e outros arranjos, tinha-o sempre na algibeira.
O filho mais velho de Teodoro, se não era dado a brutalidades esportivas, não possuía iniciativa de coisa alguma. Formara-se em direito e foi o pai quem lhe arranjou um emprego de guarda no cais do porto, apesar de anel e tudo.
Há anos, tendo, por acaso, se encontrado os dois velhos amigos, Felisberto perguntou-lhe o que fizera do seu filho mais velho, formado em direito.
— O que fiz? Fi-lo guarda do cais do porto.
— Como? Um bacharel?
— Por certo.
— Pois o meu, por não dar pra nada, deixei-o no football.
Como dizia acima, esses dois velhos amigos não se encontravam, há muito tempo, talvez desde que tiveram a conversa acima.
Há dias, eles se vieram a encontrar e foi com efusão de velhos camaradas que se falaram.
— Então, Teodoro, teu filho do cais do porto ainda continua lá?
— Continua; por sinal, que já é escrevente; e o teu?
— Ah! Não sabes?
— Que houve?
—Vai receber cinquenta contos; é um herói nacional.
— Homem?
— Venceu o Campeonato Sul-Americano de Football, com o team nacional. E dizer que ele não dava pra nada!