O ilustre presidente do nosso Sindicato de Escritores, o querido Plínio Doyle, tem feito valiosas descobertas na sua carreira de bibliófilo, mas desta vez o tesouro foi por demais precioso: o próprio manuscrito de Til. 400 laudas de papel almaço, na letrinha inconfundível de José de Alencar. E não uma cópia, mas o manuscrito direto todo riscado, rasurado, emendado, sublinhado. Tal como foi parido!
Publicado em folhetins pelo jornal A República, Til foi escrito, conforme confissão do próprio José de Alencar “em viagem, sobre a perna, ou num canto da mesa de jantar”. Provavelmente escrito dia a dia, cada capítulo entre seis e sete tiras de papel, a ração certa do folhetim. Que estes folhetins de jornal, 100 anos atrás, eram muito parecidos com as novelas de TV de hoje em dia: o autor fabricava a novela à medida em que a publicava, e muitas vezes as simpatias ou as reclamações do público influíam no desenrolar do enredo. Porque a paixão do leitor do folhetim pelo seu romance era tão violenta quanto a do telespectador pela sua novela; a vida da casa se suspendia na hora em que o pai ou a moça mais prendada da família fazia a leitura do capítulo diário; senhoras choravam com as desventuras da heroína, moços se revoltavam com as manigâncias do vilão; e de um dia para outro era intenso o debate sobre as probabilidades da intriga do capítulo por vir. Como veem, mudam os progressos da técnica, nasce a eletrônica, mas os costumes mudam pouco e os corações não mudam nada.
Mas voltemos à preciosa descoberta, a esse tesouro amarelado em letra miúda e tinta preta, que comovida folheio. Parece que a gente está na intimidade do autor, que lhe respira sobre o ombro, espiando o manuscrito ir nascendo. As indecisões, os riscos, aquele momento fugidio, mas definitivo da criação literária, em que uma palavra é trocada por outra, uma frase de diálogo riscada e outra escrita na entrelinha, para ficar — como ficou aqui, pelos séculos dos séculos; para ser copiada e repetida, edição por edição, tal como brotou da cabeça e foi referendada na posterior leitura. Caracteristicamente. Alencar jamais amplia o texto inicial; pelo contrário, sempre recorta, substitui, apara o que lhe parece demasia. Quando risca, risca mesmo, obscurecendo o melhor que pode a linha desprezada. E dá na gente uma curiosidade louca de arranjar um raio X — deve havê-los, sei que os há — que nos revele o teor da palavra ou da frase recusada para fazer comparação com a escolhida, e descobrir assim o processo de trabalho alencarino, no seu mistério criador.
Num gesto de judiciosa generosidade, foi o manuscrito de Til doado a Plínio Doyle, que o ordenou (imagino com que comovido amor!), o recompôs, e o colou pacientemente em folhas de papel (em alguns casos o almaço mais que centenário já se desfazia e é surpreendente como sofreu pouco nas mãos dos tipógrafos do jornal, dos quais se vê aqui e além uma anotação técnica): fez a doação à viúva de Carlos Sussekind de Mendonça, filho do escritor Lúcio de Mendonça, redator do jornal A República onde o romance foi publicado e a quem sempre pertenceu o manuscrito. Provavelmente Lúcio, irmão do dono do jornal, Salvador Mendonça, teve o cuidado de ir preservando as tiras manuscritas lá na redação, à medida em que os tipógrafos as largavam — sabendo bem a preciosidade que era.
Aí, não resisto a mais uma manuseada pelo comovente manuscrito, agora muito bem encadernado. Vejo as anotações do punho de Alencar, ao pé de algumas páginas, esta, por exemplo — (foi Plínio que, com o dedo meio trêmulo, me chamou a atenção para ela): lá em cima uma cruz sobre a palavra “sungar-se” e embaixo a malícia do inovador da língua: “isca para os críticos”. Torno a lutar com as palavras riscadas novamente penso num raio X. E largo aqui estas anotações que também devem seguir para o jornal, e me afundo no grande volume vermelho, lendo, decifrando, adivinhando, batendo o beiço, como quem reza...