Coisas do "sítio"

 

Fonte: Toda crônica.  Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p. 583. Publicada, originalmente, na revista Careta, 9/02/1924, e no livro Coisas do reino do Janbom, p. 200.

Tenho para mim que esta nossa engraçada República só devia andar em permanente estado de sítio. É o estado que lhe convém e lhe vai às mil maravilhas. A primeira vantagem que tem o estado de sítio é que todos nós nos abstemos de falar em política. Ora, isto é uma grande vantagem para a mentalidade carioca, porquanto o seu pensamento é por força de sua força encaminhado para outros assuntos. Quando não estamos em estado de sítio, mulheres e homens, melindrosas e almofadinhas só se preocupam com despautérios dos políticos, politicões e politicoides; mas, quando estamos em pleno regímen da suspensão das garantias constitucionais, toda essa gente, a que o Afrânio chamaria fauna urbana, dirige a sua atenção para outros alvos e percebe que há na vida coisas mais importantes do que um discurso do senhor Irineu Machado ou um aparte do truculento senhor Ellis, cujas saudades dos tempos da escravatura ainda hoje perduram. Pelos bondes, pelas confeitarias, pelos cinemas vê-se que toda a gente se abstém de falar do governo, pró ou contra, tratando de temas mais variados.

Observem só os senhores os jornais. Nos dias de garantias constitucionais, não se abria um em que não houvesse meia dúzia de descomposturas no presidente da República, nos ministros, no Congresso e até no senhor Carlos Sampaio.

Eram de uma monotonia celestial: sempre a mesma delícia de desaforos contra as autoridades constituídas, como se diz em calão de mensagem. Tal cousa aborrecia sobremodo; e perguntávamos cá com os nossos botões: esses homens que escrevem nos jornais, para nosso prazer e agrado, não têm mais que dizer senão palavrões contra os figurões?

No dia seguinte, era a mesma chanson. Veio o “sítio”, porém, e eles mudaram de tom. Tratam de coisas variadas e distantes.

Abro, por acaso, um rubro jornal oposicionista, em qualquer manhã destes dias de castigo governamental, e encontro, além de um substancioso artigo do meu amigo Mário Guedes, sobre o “Destilamento da carne-seca”, outro assinado pelo grande jurisconsulto João Sem Telha.

Não é só esse que me causa tão excelentes surpresas. Num outro, que, há um mês, só se me deparava com descalçadeiras no governo, encontro agora um artigo do profundo filósofo Humberto de Campos, tratando do atual Einstein e do velho Lobatchévski.

Essa mudança de orientação intelectual dos nossos periódicos só posso atribuir ao estado de sítio, porquanto ela só se verificou depois que ele foi decretado.

Sendo assim, eu e o leitor amigo só temos que o bendizer, pois veio ao nosso periodismo mais atenção para as altas cogitações da inteligência humana.

lima-barreto