Originalidade, Londrina-PR, 1969. Foto de Haruo Ohara. Coleção Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Com todas as coisas boas que nos trouxe – entre elas, a garantia de originais impecáveis, mesmo após muita mexida –, a escrita no computador deixou em alguns de nós, o pessoal (me inclua nessa) chegado numa arqueologia literária –, uma coisa ruim: como saber, agora, por onde veio o autor até o texto definitivo, se já não se usa entregar páginas recobertas de rabiscos e garranchos, matéria-prima da crítica genética, tão fascinante quanto reveladora? Já não dá para saber como foi que se deu o trabalho de “despiorar” um texto, para usar aqui uma invenção verbal do perfeccionista Otto Lara Resende. Despiorar romances, contos, poemas, ensaios – e também, por que não?, crônicas, pois, embora escritas no sufoco dos deadlines da imprensa, muitas delas, o cronista sabe, poderão sobreviver à circunstância.
É menos comum do que em outros gêneros, mas acontece. Basta dar uma espiada, aqui no Portal, nos fac-símiles dos recortes retocados por alguns de seus autores. Não estranhe se entre eles não está o Otto, logo ele, apóstolo da despioração; é que a morte, vinda sem muito aviso, não lhe deu tempo para pôr no ponto as crônicas que publicava quase todo dia na Folha de S.Paulo. Sabemos que sofria daquilo que o cupincha vitalício Hélio Pellegrino, psicanalista, chamou de “bibliofobia” – uma inapetência para estar em livro, forte o bastante para não permitir reedições.
Ainda assim o escritor mineiro, aqui e ali, meteu a mão em papel de jornal ainda quente. Veja, por exemplo, O sax e o saque e Vencedor versus perdedor. Otto, é verdade, não chegou aí ao rigor de artista que o levou a passar os últimos anos de vida a reescrever O braço direito, seu único romance, de 1963, com tamanha fome de perfeição que daí resultou, pode-se dizer, um outro livro. Em maio de 1992, que seria o ano de sua morte, recebi dele, recém-saído das máquinas, um exemplar de O elo partido, seleta de contos que o amigo Dalton Trevisan o convencera a publicar – e, ao folheá-lo, topei com garatujas desse Sísifo da literatura no entrelinhamento de “Mater Dolorosa”:
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O que leva um cronista a retrabalhar textos já publicados? Não raro, a necessidade de remediar crises agudas de falta de inspiração. Não se trata, creia, de delinquência literária, mas de procedimento comum, desde sempre, entre os profissionais do gênero. “Vez por outra”, contou Fernando Sabino na delícia de crônica que é O estranho ofício de escrever, “recauchutei um escrito antigo à falta de coisa melhor, confiante no ineditismo que o tempo lhe confere.”
O recordista em matéria de repeteco crônico é provavelmente Rubem Braga, que em cinco ocasiões serviu ao leitor o mesmo quitute, com o cuidado, às vezes, de trocar o título – Oceano, Mar, mormaço e amor e Joana e o mar –, e fazer alterações miúdas. A partir da segunda republicação, extirpou uma passagem – “ripar o Vargas e as malfeitorias de seu malacafento governo” –, já que o presidente, nesse ínterim, decidira sair da vida para entrar na História. Fez mais. Por alguma razão, a Joana de Lorena de “Oceano” ficou sendo apenas Joana, com a vantagem, deliberada ou não, de abranger quantas xarás haja neste mundo.
Com década e pouco de intervalo, Apartamento, também do Braga, saiu de novo como A aventura da casa própria – e se não teve mais reprise, não terá sido por falta de título, pois no recorte da primeira versão o autor anotou alternativa: “A aventura da propriedade”. Pequenas reformas foram feitas naquele “Apartamento” – e até mesmo num possível morador, pois um “homem pobre” foi reajustado para “modesto”. Muito tempo se passou, também, para que O inverno, de 1952, ressurgisse como Chuva sobre a cidade.
Menos dada a revisitar recortes de caneta em punho, numa dessas investidas Rachel de Queiroz eliminou uma frase com vigor e tinta azul. Mais adiante, porém, arrependeu-se da intervenção, pois quando Um caso obscuro foi para livro – 100 Crônicas escolhidas, de 1958 –, lá chegou com a passagem restabelecida. Essa coletânea acolheu também Meditações sobre o amor, com pequenas alterações em relação ao original. E o mesmo poderia ter acontecido com Passarinho cantador, bonita crônica na qual Rachel trocou um galho por um ramo, além de silenciar o som ruinzinho de um “quer querendo”.
Outro impenitente mexedor em textos próprios foi Paulo Mendes Campos, que volta e meia recuperou para crônicas mais ambiciosas as notas que durante muitos anos desovou em sua coluna, “Primeiro plano”, no prestigioso Diário Carioca. O que ali era publicado vinha sem título – explicação para o fato de numerosos textos seus neste Portal estarem identificados por começos de primeiras frases. É assim com Os dias se alongam..., crônica que, reaproveitada dois anos depois na revista Manchete, lá chegou como Verão. Vale a pena ler as duas, nem que seja para saborear a perícia com que o autor despiorou um texto já de qualidade. Não se limitou a remediar barbeiragens imputáveis ao jornal, como, logo na primeira frase, “crepúsculos” ter virado “escrúpulos”. Reconsiderou vacilos de sua lavra, como o adjetivo “sadio” com que qualificara o erotismo dos verões cariocas, trocando-o pelo mais verossímil “forte”.
Paulo Mendes Campos não chegou a reaproveitar Poetas, mas por via das dúvidas passou a faca no último parágrafo, que poderia – confira no recorte – passar má impressão de um colega mais velho, o poeta Augusto Frederico Schmidt. Ao reler O galo, parece ter pensado se não caberia juntar à ave o charme de um personagem dos mais queridos – e rabiscou: “Vinicius e o galo”. Nesta crônica, a caneta de Paulo estranhou duas esquisitices – “u’a” e “garções” –, provavelmente introduzidas em seu texto por um revisor adepto do português castiço. O mesmo, quem sabe, que deixou sair “desapontava” em lugar de “despontava”.
Talvez mais do que Rubem Braga, o cronista mineiro era dado a disfarçar texto antigo sob título novo. Em dois casos, pelo menos, trocou coisa boa por outra menos feliz, ou mesmo francamente ruim. Foi assim com a irretocável O amor acaba, de 1964, que sete anos mais tarde voltou a ocupar a página de Paulo Mendes Campos na Manchete como “Fim de amor”. Além disso, veio acompanhada de três dispensáveis entretítulos: “Nas ligas, nos cintos”, “Nos mesmos drinques” e “E renasce como flor”. Ainda bem que a crônica chegou às páginas de O colunista do morro com o título original. O mesmo se diga da divertida Um diplomata exemplar, de Homenzinho na ventania, que tivera reprise na Manchete como “De conversa em conversa”.
Já na versão final de Talvez, incluída em O cego de Ipanema, Paulo Mendes Campos mostrou o competente editor que era ao reduzir de 18 para 12 as ocorrências do advérbio que dá título à crônica. No caso de Duas variações sobre um tema antigo, ele tanto mexeu no texto original que, como Otto em O braço direito, acabou criando coisa nova – e tricolor: Verde, azul, castanho. Em qual dessas versões foi mais feliz? Páreo duro. Tenho aqui um palpite, mas gostaria de ouvir você.