Periódico
Diário Carioca

Publicada, posteriormente, em Manchete, de 17/10/1953, com alterações e o título "Verão".

Os dias se alongam, os crepúsculos têm mais cores, e ouvimos nas tardes o que um escritor de expressões certas chamou o esporro das cigarras. Os tons se tornam mais nítidos e intensos, ampliados no ar pesado e claro. O excesso de luz torna os volumes difusos, os olhos doem. Estamos caminhando para o verão.

Só depois de muitos séculos veio um poeta discordar da euforia europeia da primavera, chamando o abril inglês, dos lilases excitantes, o mais cruel dos meses.

Entre nós, a divergência sobre o verão é geral. Temos o hábito de perguntar se a pessoa gosta ou não do verão. E as pessoas, diversas pela forma, pelo peso, condição social, sensibilidade, porosidade a preconceitos, têm um modo particular de viver o verão e senti-lo.

O homem cordial acha encantos no verão; o de coração opaco só tem sentidos para o calor. As mulheres ficam mais nuas. A própria vida parece que fica mais nua. O verão carioca sempre respirou um erotismo sadio.

O rico vai respirar em Petrópolis ou Teresópolis o ar fino da serra; a classe média fica por aqui mesmo penando e se divertindo; o pobre, sem outro escolher, continua a quebrar pedras. Digo quebrar pedras porque estou ouvindo lá fora o golpe da marreta na alvenaria.

Os langores estivais da gente fina, seus passatempos nas cidades frescas, são monótonos. Petrópolis é invenção de maridos. Constroem lá um amor de casa e sobem as mulheres no verão ― é tão bom para as crianças. Ficam eles por aqui, felizes, e vão ver a família nos fins de semana, e falam com ar dramático dos que podem deixar o Rio durante o calor.

Ninguém se diverte em Petrópolis, a não ser os namorados; ninguém aí descansa, a não ser o brigadeiro Eduardo Gomes. Ninguém se diverte nas estâncias. O prazer é na volta, quando as senhoras dizem para as amigas que a serra estava uma delícia e o industrial acredita que as águas minerais lhe asseguram saúde excelente para mais um ano e, talvez, a devolução de funções orgânicas esquecidas.

O verão é para a mocidade, de corpo ou de espírito. Porque o verão não é paz, é combate. Ameaça-nos a todo momento a doce idiotice tropical. Muitos tombam na luta e passam três meses em estado de estupidez. Que calor! Que calor! E não têm força nem iniciativa para abrir a alma às curiosidades, às poesias, aos prazeres do estio, esplêndido.

Este verão do Rio é tempo de violentos lirismos. Diante do mar, o prosador mais chão sente ímpetos anacreônticos. É no verão que percebemos o mar. Não apenas a água fria onde é bom mergulhar o corpo; não apenas o espaço largo de onde bafeja a viração; não o mar schmidtiano, noturno, assustado com o guaiar aflito dos ventos; não o mar dos iates grã-finos a bordejar a Guanabara. Mas o mar dos desejos insatisfeitos, o mar das aspirações ingênuas, o mar ele mesmo de um poder estranho e eterno, cheio de insinuações abstratas ao sentimento de viver e morrer.

Corrigindo a dureza desta cidade seca, o mar suaviza também a aspereza de nossa vida, lançada no sentido da linha reta, quando é mais natural e doce seguir a curva dos caprichos e paixões. O mar é às nossas almas tímidas, viciadas na usura de satisfações pequenas, um convite forte, ao arrebatamento, às dissipações.

Retórica pura? Relevem-na: é o verão. Devo dizer que as imagens desmedidas dos colunistas é a mais inocente das consequências do verão. A outros costuma levar um alvoroço muitas vezes funesto. Os dois polos de que falava o poeta ― um para o bem, outro orientado para o mal ― não se equilibram no verão. Pesa mais a agulha do mal. As coisas inesperadas acontecem com maior frequência no verão: a donzela que muda de conduta, o vigário que larga a batina, os assassinatos absurdos, o frívolo que andava à malta e se casa e se torna exemplar, as resoluções insensatas, os desatinos populares, tudo isso se registra com mais largueza durante os meses quentes. Sem falar no coração. Esse costuma desandar, escandalizar, enlouquecer. A “leva de verão”, dos que abandonam o lar, é um fato da sociologia do Rio.

Existe um segredo do verão. É força ter ouvido fino para entendê-lo. Um segredo que está no ar nos bares, nas praias, no rosto, e na pele das mulheres, no olhar ansioso dos homens na agitação geral, um segredo sensível àqueles ouvidos finos como o murmúrio de muitas vozes distantes.

paulo-mendes-campos
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