Periódico
Manchete, nº 336
Publicada também em: livro Homenzinho na ventania, de 1962; e Manchete, de 6 de setembro de 1969, com o título De conversa em conversa.

A cena se passa numa capital nordestina. Os personagens são três: o marido, juiz de direito, cidadão probo e bom pai de família; a mulher, simples, devotada aos filhos e deveres; o tio da mulher, amigo e conselheiro do casal, alma franca e bem vivida.

Conto depressa o drama que feriu esse lar tranquilo: deu-se que, num momento de loucura ou de fraqueza, o honrado juiz, às cinco horas da manhã, no barraco do quintal, foi apanhado em flagrante, pela própria esposa, em delito de colóquio de amor com a cozinheira da casa. Que miséria, que escândalo, que vergonha! A doce e honesta senhora foi tomada, no local do crime, de uma crise nervosa, com o inconveniente de despertar os vizinhos; e esses espalharam por toda a cidade o crime nefando. Muito divertido quando acontece com outros.

A mulher, na companhia das crianças, foi morar com seus pais; o marido encerrou-se em casa, só abrindo a porta no terceiro dia, para o tio de que falamos. Este, calmo como sempre; o outro, roendo as unhas do remorso, barba por fazer, no mais perigoso estado de desestima por si mesmo.

– Tenho nojo de mim, disse, e preciso lavar o meu erro.

– Lavar como, perguntou o tio.

– Com o meu próprio sangue, foi a patética resposta.

– Você ficou zureta, rapaz?

– É a única solução: vou matar-me.

– Bonito papel, retruca-lhe o tio. Depois de fazer a sua traquinagem, você quer retirar-se para o outro mundo, deixando neste uma pobre viúva, sem recursos, com três filhos. Francamente!

– Não vejo outra saída.

– Mas eu vejo.

– Qual?

– O desquite.

– O desquite?!

Sim, argumentou o homem realista, só o desquite era uma solução digna e satisfatória. E, desenvolvendo essa tese, acabou conseguindo o consentimento do pobre marido. Em vez do revólver, o desquite.

No dia seguinte, outra visita desse professor de ceticismo e diplomacia.

– Estive pensando melhor. Quer saber de uma? O desquite não é uma boa solução no seu caso.

– Então, eu me mato.

– Vamos com calma. O melhor é você mudar-se com a mulher e os meninos para uma cidadezinha de Minas ou de São Paulo. Talvez eu lhe arranje um lugar de promotor.

– Mas ela não aceitará. E eu viveria humilhado.

– Deixa, que dou um jeito. Quanto à humilhação, isso passa com o tempo.

No dia seguinte, volta o tio para dizer ao infeliz:

– Você é mesmo um sujeito de sorte. A santa concordou. Escrevo hoje mesmo a um amigo sobre a promotoria.

Mais uma semana, e o tio volta a trazer-lhe novidades:

– O lugar de promotor está difícil. Além do mais, não creio que você vá se dar bem no Sul. Já pensou nisso?

– Mas não tenho por onde escolher. Viver aqui é que eu não posso. Sou um homem desmoralizado.

– Tolice, meu velho. Nossa capital não é tão pequena assim. Acho, no fundo, que vocês deveriam mudar de bairro e botar uma pedra em cima de tudo.

– Nunca.

O tio não desistiu da ideia, ele mesmo ajudaria a escolher uma casinha distante, coisa que foi feita uns cinco dias depois. Mas a nova residência, além de muito mais cara, não se comparava à primeira, precisando de reparos, sem quintal e sem jardim. O tio se apegou às razões materiais para raciocinar:

– Vocês querem mudar de casa, não é?

– Eu não, a ideia foi sua.

– Pois é, mas não dá certo.

– Então, vou para o Sul.

– Bobagem.

– Então, me mudo para a outra casa.

– E quem vai sofrer com esse capricho? Sua mulher e, sobretudo, as crianças. Essas é que vão se privar de quintal por sua causa. No seu lugar, agiria diferente. Sabe como são essas coisas: no princípio, parece que o mundo vem abaixo, mas depois passa. Mudar de casa com uma crise dessas! Onde já se viu!

O marido exclama, quase num soluço:

– Mas eu preciso fazer alguma coisa!

– Concordo plenamente com você.

– Mas fazer o quê?!

– Tenho uma ideia.

– Pode dizer.

– Pinte a casa em que está morando. Mande fazer uma limpeza em regra.

– Mas…

A casa foi pintada de novo, a mulher voltou com os filhos, e aos domingos o tio costumava aparecer para o ajantarado.

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