7 fev 1959

Duas variações sobre um tema antigo

Periódico
Manchete

Publicada, posteriormente, em Manchete, de 19/12/1970, bastante alterada e com o título "Verde, azul, castanho".

Como é difícil, como é desmesuradamente difícil ser brotinho. Como se fosse uma santa à beira de um pecado, uma artista de circo com uma vontade de rir muito lá no alto, como se fosse uma menina de primeira comunhão depois nuinha dentro dum pesadelo animado.

Porque na vida dum brotinho é tanto problema. Amanhece problema e, quando anoitece, o amarfanhado pai chega em casa tão sombrio; na rua é problema; ler um livro, problema; não ler, problema; ir ao cinema, também agora é problema; escolher um vestido, problema. Só a sua é solução, o resto a desequilibra. Ai, como é impossível ser brotinho nesta vida! O corpo de repente sobrando. Capaz de jurar que meus pés estão crescendo como enormes flores feias. Já não posso descer mais uma vez a bainha da saia para esconder este joelho ossudo. Estou horrenda. Vou ficar uma giganta, uma giganta horrenda, vou ficar parecida com o homem da perna de pau. Horrendíssima. E aquele garoto maroto que disse para os outros: “Esta pequena é um show”! Problema, problema.

Estirada na ribanceirinha de areia, quem a olha, olha de verdade: por alguns momentos sente-se olhada completamente mulher. Dói esquisito. Vai pular dentro da boia e, mal se aconchegou, já é menina. Raiva da mãe que a espia de longe: no mar, medo que se afogue; em terra, que se enamore. Mas o ódio mesmo é daquele ridículo alfinete de cabeça com que a mãe prende o maiô atrás das costas. Melhor nem vir à praia. E a sua cólera juvenil é tão impetuosa que ela se desfaz numa compaixão desamparada. Queria e devia naquele momento morrer por sua mãe. Vem correndo de longe (menina, menina mesmo, que me importa) e pendura no pescoço da velha e a beija na ponta do nariz:

— Mamãe, você é uma uva morena! 

— Toma jeito, garota, isso são modos?

—  Seria divino se vendessem cachorro-quente na praia, não é, mãe?

Mais tarde. Debaixo do chuveiro, esfomeada e feliz, como se, depois, fosse um baile. Quando fecha os olhos, fica meio tonta e vê uma porção de outros olhos (olhos d’homem) pregados nela. O livro de inglês está errado: as paredes não têm ouvidos, tem buracos. Enxuga-se, espalha talco pelo corpo cheio de ossos a brigar com a carne, vem uma tristeza-pensamento: assim lavada, fico com cheiro de menina pequena. No quarto da cozinheira corrige esse aroma de inocência com um pouco de perfume nacional. Corre para a mesa. A mãe:

— Que é isso, menina?

— É perfume, mãezoca, sabe o que é perfume? 

— Pois vai lavar isso e trocar o vestido imediatamente. Que cheiro de mulher ordinária!

— De mulher ordinária, mãe?!

E perdeu a fome, e começou a chorar sem pressa as lágrimas todas de seus olhos.

*

Desta vez, eram três brotinhos dentro do lotação, duas horas da radiante e espaçosa tarde. Três brotinhos fazendo verão. Uma estalava nos seus quinze anos novinhos em folha; outra ia fazer quinze; a terceira pulara dos quatorze, como o pinto amarelíssimo irrompe da casca de manhã. 

Uma reluzia verde; o patinho preferia olhos azuis; a terceira consumia uma luz castanha e grave. Três brotinhos, três quatis comendo avelãs, três sonetinhos com chave de ouro, três auroras boreais no deslumbrante calor do Rio de Janeiro.

Nós, cavalões, suávamos. As três gaivotas, sem saber se estava quente, amanheciam. Nunca meus olhos viram nada mais fresco, mais limpo, mais inelutável. Eram como lindas hortaliças de cores firmes espalhadas sobre o mármore.

Vestiam-se de florões estampados sobre campo alvo. Falavam aos poucos e com doçura. A importante ternura da metamorfose silenciava seus pensamentos incompletos. Funcionavam muito com os olhos, e com os olhos (verde, azul, castanho) iam entendendo e comentando a novidade do universo. Passava um pedaço de mar entre duas esquinas; passava o manequim dentro do aquário; passava um rapaz de topete com a sua blusa, passava uma gorda matrona com uma galinha embrulhada; os olhos viam e transmitiam mensagens verdes, azuis e castanhas. 

O espectador instalara-se na permanência fugaz deste momento, no âmago da contradição divina. Uma (receava) não se equilibraria no futuro com muito amarelo no cabelo; a segunda talvez se alongasse demais, linda, mas meio engraçada; a terceira só corria o risco do risco da sua boca. De qualquer forma, três rosas herméticas espalhavam naquele instante a perfeição duma idade. Não eram predicados, mas a oração principal do momento, a razão indiscutível do momento, os três madrigais implacáveis do momento. Em torno delas, os elementos acessórios: nuvens, edifícios, oval da Esso, vagas, homens barbudos, eu, Leônidas nas Termópilas, Ariel e Miranda, espaço-tempo, Brasília, Confederação dos Tamoios, prorrogação de mandatos, inumeráveis formas de humanismo. Elas existiam para resplandecer com uma luz casta.

Três brotinhos irradiando luzes coloridas nesta cidade grossa. Dentro do lotação feio e vulgar. Dentro do meu coração feio e vulgar. Acendi um cigarro como se tivesse parado para refletir. Se ao menos eu soubesse compor no ar esses anéis de fumaça. Mas não precisava entender coisa alguma. De repente, em pleno dia, fez luar dentro do coche. Do alto de minhas velhas pirâmides, a beleza me contemplava.

paulo-mendes-campos
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