Passarinho cantador veio voando de longe. Lá de cima descaiu. Viu o galho de goiabeira com a goiaba madura, peneirou e desceu em pique. Pousou no galho, beliscou a fruta, deu dois trinados bem alto e saiu atrás do companheiro.

Na janela estava a moça do cabelo ruivo. Pensava aos seus amores e escutando o passarinho deu um suspiro sentido e gemeu: Ai que saudades que eu tenho.

Podia ter continuado: ai que saudades que eu tenho da aurora da minha vida. Mas, coitadinha, não era dos oito anos nem da aurora da sua vida que ela sentia saudades; e sim de um meio dia quente de verão, das amendoeiras na praia, de um banco de cimento e de um tenente.

Pobre mocinha, sentida, consumida de saudade, chega a chorar na janela. 

Ai, tenente que embarcaste. Ou embarcaste ou sumiste.

Tenente vestiu a farda garance, engraxou os talabartes, botou o quepe de lado, frechou o olhar verde-mar.

A mocinha do cabelo ruivo estava no oitão da sua casa, trajada de vestido branco. E vendo a farda garance, e vendo o quepe de lado, e vendo o olhar verde-mar, saiu como quem não quer querendo e foi sentar com ar de fastio no banco, debaixo da amendoeira grande, e lá ficou, cismadora, com os olhos na água do cais.

Tenente fez continência, perguntou se incomodava. A moça deu um muxoxo e disse: “Oxente, não pago aluguel do banco”.

Tenente, moço tão fino, agradeceu a licença, bateu com o lenço no banco por amor de não empoeirar a farda garance, sentou-se, cruzou as pernas, e falou que não tinha se referido só ao banco; referira-se ao coração também. Que ela assim à beira-mar só parecia que tinha vindo arejar tristezas e longe dele a ousadia de perturbar a meditação de jovem tão bela.

A mocinha do cabelo ruivo mostrou pela primeira vez o seu sorriso, disse que bela não era, mas triste, com efeito, estava. O mar, sendo também triste, por isso é bom companheiro.

Então, tornou o tenente, bem, na verdade o mar, sim o mar... 

Ai, o mar.

Mas para a moça, o pior do mar era em relação ao tenente, pois digo e repito que ele tinha o olhar verde-mar, e ali junto, comparando.... Quem diria? A mocinha esqueceu tristezas, deu um suspiro fundíssimo e o mais que soube dizer foi igualmente o mar, sim o mar. Ai o mar.

Daí por diante ficaram calados e com pouco mais a mocinha consentira que o tenente segurasse a sua mão.

*

Isso já faz muito tempo. Por duas vezes os garis da Prefeitura vieram com os seus serrotes e a amendoeira foi podada. Tenente deixou de vir. O banco é que não mudava e nele todas as tardes vinha sentar-se a mocinha com o seu cabelo ruivo não mais solto pelos ombros, mas todo enrolado em cachos. E ora aparecia um fuzileiro, ora chegava um paisano; ora atleta de calção; tenente nunca mais veio.

Diz que embarcou, foi para o norte. Outros dizem que foi para o sul, no trem internacional. Ai que tenente malino. E hoje o mar pode crescer, pode minguar com a maré, pode se assanhar em ressaca, mocinha desvia os olhos, que mar castanho, amarelo, cinzento, roxo, oleoso, só não é mais verde-mar!

Do oitão da sua casa a moça do cabelo ruivo suspira debruçada à janela. Passarinho cantador torna a pousar no galho da goiabeira, dá dois trinados penosos. Logo vem o companheiro, partilham ambos da fruta toda amarela por fora, toda vermelha por dentro. Depois começam um namoro. E a mocinha ― ai, mocinha, que vida triste, que mundo tão desigual! Mocinha afasta o seu rosto. Mas não pode afastar o ouvido. Passarinho cantador, amando na goiabeira, canta que é um desadoro.

Mocinha bate a janela. Assim também é demais.

rachel-de-queiroz
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