19 dez 1970

Verde, azul, castanho

Periódico
Manchete

A crônica foi publicada, anteriormente, em Manchete, de 7/01/1959, com o título "Duas variações sobre um tema antigo".

Dessa vez eram as três meninas. Três meninas-moças às duas horas da tarde. Da espaçosa tarde vagarosa. Três garotas fazendo primavera no verão.

Uma estalava nos seus 15 anos novinhos em folha. Outra pulara dos 14 como aquele pinto de pata que irrompeu da casca na manhã de antigamente. A terceira, embrulhada para presente, ia fazer 15. Feitas as contas, eu ganhava das três parcelas.

Uma reluzia verde-Cézanne. O patinho preferia olhos azuis. A terceira consumia, prematuramente grave, uma luz castanha.

Três caracóis rococós. Três esquilos roendo avelãs. Três auroras boreais no deslumbrante e estafante calor guanabarino. Três potranquinhas desta pastagem à beira-mar. Três caixas de música a tilintar o minueto do amanhecer. Três sonetinhos, cada um com sua chave dourada.

Nós, cavalões, suávamos. As três gaivotas, sem saber que andava um calorão danado, duas horas passadas do meridiano, insistiam em amanhecer. Nunca meus olhos arcaicos viram nada mais limpo, fresco, inelutável. Eram três braçadas de hortaliças espalhadas sobre o mármore.

Vestiam-se de florões estampados sobre campo alvo. Fora de moda e eternas. Falavam aos pouquinhos como quem toma milk-shake. E com uma doçura que dava reflexos. A importante ternura da metamorfose (da metafísica, se quiserem) truncava seus pensamentos.

Funcionavam demais era com os olhos (verde-Cézanne, azul-Dufy, castanho-Morandi). E, com os olhos, iam entendendo a novidade engraçadíssima do universo.

Passava um pedaço do Atlântico entre duas esquinas: elas olhavam. Passava manequim dentro do aquário: elas espiavam. Passava o garoto barbudo: elas contemplavam na moita. Passava matrona opulenta com uma galinha dramática embrulhada: elas adivinhavam. E um enorme Alain Delon na porta do cinema. E um cego de pijama. E um sacerdote de calças bem passadas. Um soldado de gestos tímidos, pedindo desculpas por andar de metralhadora. Uma outra menina-moça de mídi sensacional e óculos descomunais.

Olhos viam e transmitiam mensagens, verdes, azuis, castanhas.

O telespectador, velho e profundo como um polvo, caranguejo agarrado ao chão de mares silentes, fatigado abutre de grotões desolados, o espectador instalara-se na permanência fugaz do momento. No âmago da contradição divina. Ele estava indo. Elas estavam vindo. Era de morrer de rir.

Então ele ficou olhando para elas pela primeira e última vez. Uma (receava) não se equilibraria muito bem no futuro com certo excesso de amarelo: teria de apelar para o recurso dos retoques. A segunda talvez se alongasse um pouquinho demais, como Alice depois de virar o vidro de “Drink me”; de qualquer forma, seria a giganta mais linda do Rio de Janeiro. A terceira corria apenas o risco do risco de sua boca: da gravidade ao amargor, filha minha, só há um pequeno abismo.

De qualquer forma, repetimos, três rosas herméticas esparziam naquele instante a transitória perfeição de uma idade. Não eram predicados, mas a oração principal do momento. A razão indiscutível do momento. Os três madrigais implacáveis do momento.

Em torno dos três passarinhos (verde, azul, castanho) arrumavam-se os elementos acessórios: nuvem, edifício, cartaz de propaganda, homem atingido por um raio, Ariel chateando Calibã, espaço-tempo, a ideia de criar Brasília, cassação de mandatos, erros meus, má fortuna, amor ardente. Inumeráveis formas de humanismo, enfim. E uma cósmica, uma difusa dor de Menelau, quando levaram a esposa dele para longes terras.

Três meninas irradiando luzes nesta cidade bonita e grossa. Irradiando luzes nas vizinhanças do meu coração vulgar, atingido por um raio.

Acendi um cigarro como se parasse para escolher um caminho. Se ao menos eu soubesse compor no ar esses anéis de fumaça. Mas não escolhia nada. Não sabia nada. Já era.

No entanto, por esta luz que me alumia, não era preciso escolher ou entender nada. Foi de repente, como a salvação. Do alto de minhas mumificadas pirâmides, eu aceitava a beleza do meu deserto.

paulo-mendes-campos
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