coluna: Última Página
Publicada no livro 100 Crônicas escolhidas, José Olympio, 1952, pp. 28-32.
Não quero fazer campanha contra quem acredita em espíritos, quem tem visões ou ouve “avisos”. Espiritismo é religião tão respeitável quanto qualquer outra. Quero apenas prevenir meu amigo leitor contra alguma conversão apressada, porque o fato é que as forças da terra muitas vezes se misturam com as forças do céu.
O caso que passo a contar como exemplo, naturalmente que é verídico. Como ficção, não teria importância nem sentido. O seu valor único é a autenticidade.
Certa professora de grupo, minha conhecida, tem uma empregada, senhora cinquentona, de cara séria e jeito discreto, natural de Suruí, no Estado do Rio, de onde veio há poucos meses. E lá em Suruí deixou a mãe cega e enferma, da qual não tinha notícias desde que viera para a cidade. Analfabeta, não escrevia nem recebia cartas. Essa gente da roça não acredita muito em correspondência senão para notícias capitais.
Mas um belo dia acordou a empregada, que se chama Joana, chorando, abaladíssima, queixando-se de estranhas visões. Dizia que passara toda a noite acordada; mas não pudera chamar ninguém porque, com o medo, ficara sem fala. Sentira uns assopros no ouvido, depois lhe sacudiam a cama, como se fosse um terremoto. Por fim vira a mãe, a velhinha cega, estirada num caixão, metida numa mortalha preta. Toda a manhã a mulher chorou e lamentou-se. A patroa, penalizada, ofereceu-se para mandar um telegrama pedindo notícias. Joana, porém, tinha medo de telegramas: “E mais medo tem minha mãe. Chegando telegrama lá, se ela ainda estiver viva morre só do susto”.
Estavam nisso as coisas quando ao meio-dia aparece na casa da professora um filho homem de Joana, que também reside na cidade. Trazia na mão um envelope fechado, sem carimbo nem selo. Era uma carta vinda em mão própria da sua terra, explicou o moço. E como ele também não sabia ler, pediram à patroa que abrisse e lesse a missiva, — aliás curta e comovente:
“Minha irmã como vai esta tem por fim de lhe dizer que a nossa mãe está às portas da morte já de vela na mão. Joana se apresse senão não ver mais nossa mãe adeus do seu irmão Basílio”.
Chegando assim aquela carta, após a série de visões noturnas, era impressionante. E a própria patroa a abrira, excluindo-se assim a possibilidade de conhecimento prévio do conteúdo. Era uma dessas bofetadas que o mundo dos invisíveis atira aos pobres humanos, deixando-os cheios de susto e dúvida. Com seus próprios ouvidos escutara a patroa pela manhã a história do assopro, das sacudidelas na cama, da figura amortalhada no caixão. Com suas mãos recebera a carta, com seus olhos lera o endereço tremido e oblíquo, e depois a lacônica má nova. Naturalmente deu imediata licença a Joana para a viagem. Grande falta lhe faria em casa, mas quem pode pensar em impedir um filho de despedir-se da mãe, à hora da morte? E deu-lhe mais dinheiro, deu-lhe um vestido quase novo, consultou o horário dos trens, forneceu provisões para a viagem. Não era só caridade de burguesa progressista que a animava, mas principalmente o interesse do profano por uma criatura feita instrumento das forças do Incognoscível.
E Joana partiu. A patroa ficou contando a história aos conhecidos; contou por boca e por telefone. Chegou a contar por carta. Não a repetiu às crianças no grupo só de medo de assustá-las com essas coisas misteriosas que ficam entre o céu e a terra.
O caso era tão simples, tão líquido: resumia-se apenas a fatos dos quais ela própria era testemunha. E fazia cálculos: a carta deve ter partido de Suruí na antevéspera, de modo que a velha bem podia estar mesmo morrendo na hora das visões noturnas de Joana. Ficou a esperar impaciente a volta da viajante. Sim, porque Joana pediu que o seu lugar fosse conservado, que, consumado tudo, voltaria.
Nem espero a semana de nojo, patroa. Venho logo depois do enterro. E, falando em enterro, rompeu em pranto.
Passados oito dias, chegou Joana, mas ainda com a saia estampadinha de encarnado com a qual partira, em vez do vestido de seda preta que lhe dera a patroa, prevendo o luto. Bem, a velha continuava viva. Contou que a mãe estivera de fato muito ruim, vai não vai, mas de repente melhorara. Por isso Joana se demorara mais, até que a melhora parecesse segura. E voltou a trabalhar, como dantes.
Aquela quase ressurreição desorientou a patroa. Afinal a velha aparecera de mortalha, e dera o assopro, e sacudira a cama... Mas consultando sobre o assunto os amigos espíritas, eles lhe explicaram que era assim mesmo e, tanto o espírito encarnado como o desencarnado, poderiam mandar “avisos”. Falou mesmo em corpo astral e a professora se impressionou muito.
Nesse estado moral ficou, meio abalada, meio crente, até que um dia sucedeu uma dessas incríveis, dessas raras coincidências que só acontecem na vida real e nos romances de fancaria: recebeu a visita de uma amiga, que também lhe escutara a história da visão. A amiga vinha de propósito lhe narrar a tal coincidência inaudita. Imagine-se que o filho de Joana por acaso fora trabalhar em sua casa, consertando-lhe o jardim. Lá estava fazia uma quinzena, quando inexplicavelmente desapareceu, por uma semana. Passados os oito dias voltou e alegou motivo de moléstia para a ausência.
No jardim, revolvendo os canteiros, podando os fícus, estabeleceu-se entre jardineiro e patroa esse entendimento normal entre companheiros de trabalho. Ela explicava como queria o serviço, ele dizia, que na casa do dr. Fulano fazia assim e assim, que enxerto de mergulha só é bom com lua tal, etc. Afinal ela lhe perguntou que doença fora a sua, dias antes. O rapaz, que enterrava umas batatas de dália, ficou encabulado. Depois teve assim como um assomo de consciência e explicou:
— Dona Estela, falar a verdade é preciso. Não estive doente não. Mas o caso é que minha mãe meteu na ideia ir em casa, com vontade de assistir umas ladainhas que rezam lá no mês de agosto. Como estava num emprego bom, teve medo que a dona da casa se zangasse com uma viagem assim à toa e não guardasse o lugar para ela, de volta. Então se combinou comigo, só por causa de não fazer a moça se zangar. Pegou a ter uns sonhos com a minha avó, enfiava os olhos na fumaça das panelas para sair chorando. Aí eu mandei um companheiro fazer uma carta chamando, dizendo que a velha estava morrendo, lá no Suruí. A patroa consentiu logo, naturalmente. Tive que fazer companhia à mãe, assistimos às ladainhas e agora estamos os dois de volta à nossa obrigação...
A moça ficou espantadíssima:
— Mas criatura, como é que sua mãe teve a coragem de chamar assim a morte para cima de sua avó? Vocês não tiveram medo do agouro?
— Qual, dona! Uma velha daquelas, cega, doente, em cima duma cama, dando trabalho e consumição a todo o mundo, chamar a morte para ela não é agouro; chamar a morte para ela é mais uma obra de caridade. E daí, agouro que fosse, vê-se bem que não pegou...