Gosto muito de uma determinada espécie de poesia que transmite as sensações de um homem que volta para casa, de madrugada, depois que se esgotou a sua resistência à melancolia provável de uma noite. Na hora em que os bares e os homens se fecham e os garçons se recusam a servir mais um copo, porque o gerente já está fazendo a caixa. Aliás, por esta altura, já estamos enfarados de álcool que há mais tempo a ação do tóxico se recusava a dar-nos o esquecimento ou a vivacidade que lhe pedíamos. Com o dia que começa, vai terminando a possibilidade de conviver o notívago. Ele se torna duro, seco, inabordável, quando a aurora ensaia suas primeiras luzes tímidas no mar ou nos telhados. É, então, que a gente volta para casa. A princípio, seguimos num grupo, o grupo vai esfacelando-se pelas esquinas, até que cada homem esteja sozinho com o seu destino, individualmente sozinho, negando-se a aceitar a confusa alegria da manhã que nasce. Seguramente, há uma complexa significação neste gesto. Na face desse homem há cansaço e desaponto, como se no momento em que deixou a casa ele estivesse com o firme, mas subterrâneo propósito de nunca mais voltar, como se voltar fosse a confissão de uma derrota. Mas é muito difícil inaugurar uma vida nova. Voltamos, é a nossa vida que volta conosco, escravos que somos do dia anterior, das palavras que dissemos, dos gestos que fizemos. Na verdade, respirar numa tarde é criar o compromisso de continuar respirando na manhã seguinte. Ora, a poesia que conta estas coisas existe. Um virtuose de madrugadas a descobre em romances, crônicas, poemas, ou canções populares. Ou na história do galo. A história do galo aconteceu com um de nossos grandes poetas. Ia ele uma madrugada dessas, curtindo, além de outros desencantos, a depressão que acompanha os pilequinhos mais exagerados. Lá ia ele, lidando o demônio da “volta” quando ouviu um som engasgado, metálico, proferido sem dúvida por uma garganta de bicho. Era um grito em que entravam angústia e valentia, desespero e raiva. Pelas grades de um aviário, os olhos do poeta, entre outros galináceos, viram um majestoso galo, o responsável por aquele canto, meio desfrutável, meio dramático. Devido certamente ao temperamento belicoso que se adivinhava em seu porte, o galo fora apartado da convivência de suas esposas presuntivas, isolado em gaiola à parte. A gaiola, porém, era demasiado pequena para ele, de nobre estatura, obrigando-o a manter o pescoço dolorosa e humilhantemente recurvado. Com a aurora que de partes despontava nos beirais, o galo cantava. Oh! Nunca saberemos ao certo o que é a aurora para um galo que se preza. A aurora foi feita para cantar, para cantar de qualquer jeito. Esta verdade tem uma repercussão física na alma dos galos. Preso, imprensado, batido, o nosso galo cantava. Por outro lado, nunca calcularemos bem o quanto há de épico na alma de um poeta, os mais elegíacos, inclusive. Este, por exemplo, sentiu na cena do galo a intensidade de uma tragédia grega. Animado subitamente, ali, na solidão da madrugada, proferiu ao galo uma apóstrofe, de peito erguido, braço levantado com a paixão que um ator colocaria em palavras de Sófocles. O próprio poeta, que nos contou o ocorrido, não se lembrava mais do que dissera. Mas, dissesse o que dissesse, devia estar muito bonito.