Coleção José Ramos Tinhorão/ IMS
Nascido há exatos 100 anos, completados neste 17 de março, Antônio Maria ficou sendo, entre os cronistas do nosso Portal, o único que se foi sem publicar livro. Não que o “Menino Grande” (um de seus apelidos, título de canção sua) fosse indiferente à ideia, manifestada aqui e ali, sem muito elã. É bem possível que tivesse chegado às livrarias, não fosse o infarto que o levou aos 43 anos. Livros dele, só bem adiante, organizados e editados por iniciativa de amigos, e, mais adiante ainda, do cronista e jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, que viria a ser também o seu biógrafo, em Um homem chamado Maria.
Embora várias coletâneas tenham sido publicadas a partir de 1968, quatro anos após a sua morte, a maior parte de sua produção jaz ainda na poeira dos muitos jornais e revistas onde o cronista, na ganhação da vida, foi deixando a sua marca. Alguns de seus escritos inéditos em livro têm sido revelados no Portal da Crônica Brasileira, e outros mais virão, ainda neste ano, e não só aqui, pois ajudarão a dar musculatura a uma alentada antologia que se chamará provavelmente Vento vadio, organizada para a editora Todavia pelo jovem escritor paulista Guilherme Tauil, autor de uma elogiada dissertação de mestrado sobre Antônio Maria, defendida na Universidade de São Paulo em 2020.
Os dois citados, aliás, o Joaquim e o Guilherme, aceitaram convite que lhes fez o Portal para encorparem as comemorações do centenário do artista polivalente que foi o nosso homenageado. Com o conhecimento acumulado não apenas com seu trabalho acadêmico, Tauil, há muito leitor apaixonado do cronista, se dispôs a enriquecer a Cronologia de que já era o autor, num esforço que praticamente dobrou a fartura de informações ali reunidas. Seria imperdoável não ler, também, na aba Artes da Crônica, o artigo “Sambista, cronista e caricaturista”, no qual Joaquim Ferreira dos Santos nos fala dos múltiplos talentos de Antônio Maria – um deles, com certeza, desconhecido da maioria dos leitores: a capacidade de traçar, sem qualquer pretensão, caricaturas até de si mesmo, agora reunidas.
Mais conhecidos, claro, eram seus dotes musicais, e faz muito sentido a ótima ideia de Joaquim de harmonizar, num refinado drinque sonoro, canções e crônicas do Maria, do qual aqui vai o cardápio: “A noite em 1954”, com "Carioca mil novecentos e cinquenta e quatro", na voz de Dolores Duran; “Carnaval antigo... Recife”, com "Recife", interpretada pelo Trio de Ouro; e “Notas sobre Dolores Duran”, com a própria Dolores cantando "Canção da volta".
Já que se falou em som: a crônica “Engenhos”, neste festivo 17 de março, pode ser não apenas lida, em sua estreia no Portal, como degustada na interpretação de Bruno Cosentino. De hoje a domingo, aliás, será sempre de Antônio Maria a Crônica do Dia, pois na esteira de “Engenhos” virão “Notas para um livro de memórias”, “Infância, Adolescência, Maturidade e Morte”, “Afinal, o que é que eu sou?” e “Alegria”.
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Ficou dito que o Portal da Crônica Brasileira tem volta e meia incorporado textos de Antônio Maria (e de outros autores, como Paulo Mendes Campos ou Otto Lara Resende) que ainda não estão em livro. Pois bem: dele, neste centenário, 17 crônicas estão sendo aqui acrescentadas – e, dessas, nada menos de 11 vieram direto de velhos jornais e revistas. Era mais que hora de voltarem à luz, espanando pó e ácaros, pequenas joias como as citadas crônicas do dia. Em “Afinal, o que é que eu sou?”, o sol do sábado carioca está pedindo praia, mas eis que chegam ao cronista duas cartas – uma eriçada de acusações, como a de estar copiando ideias de Carlos Drummond de Andrade, outra gotejante de babosos elogios. O Maria não se reconhece em nenhuma delas, e, acossado agora pela dúvida que dará título à crônica, vê naufragar seu projeto de praia ao sol.
“Engenhos”, “Notas para um livro de memórias”, “Infância, Adolescência, Maturidade e Morte” são Antônio Maria na posse plena de um de seus maiores talentos de escriba, o de memorialista, capaz de recompor tempos e lugares com poucas e fortes palavras. E também com a graça e o humor meio moleque que são muito seus. Numa passagem de “Engenhos”, por exemplo, em que um nativo do campo que jamais foi ao litoral quer saber como é “esse mar que passa no Recife”: “É só de água ou tem plantação dentro? Pertence à usina ou é do governo?” Não é absurdo pensar que poderia ter vindo daí, pela picada memorialística, um dos livros que Antônio Maria não escreveu, ou não chegou a formatar.
Quanto a “Alegria”, focada num estado de espírito que em nossas vidas deveria vir primeiro, e nunca se afastar, fique aqui como arremate, à guisa de presente do cronista, como se fosse nosso, não dele, este aniversário. Sonhava o Menino Grande com uma alegria que jamais se confundisse com o “prazer formal” – uma alegria “intacta, de corpo e alma”, que fizesse as pessoas se sentirem “leves, intemeratas e bonitas”, que substituísse “o almoço, o jantar e o banho”, que dispensasse “dúzias de rosas, cestas de flores e caixas de orquídeas”, que permitisse “esquecer o Passado, todos os passados, a ponto de o paciente perguntar: ‘Quanto tempo faz que teve ontem?’”.