Ouça a crônica de Antônio Maria na voz do cantor e compositor Bruno Cosentino.
Pontable era um engenho de pouca safra. Não dava mais que duas ou três mil toneladas de cana. Mas era bonito. Do terraço da casa-grande, a gente via o cercado que não acabava e, depois, fazendo horizonte, o rio Serinhaém. De um lado e do outro, lá nas alturas, a mata. Bom fazer viagem de carro de boi, por dentro da mata, até o Engenho Alto do nosso tio Pedrinho Moraes. Mas a gente só ia uma vez no ano, três, quatro dias antes da festa de São Pedro, que era para não banalizar a viagem. A família toda, as empregadas, os gatos da casa, um papagaio. Saía-se com o dia ainda apagado, viajava-se quatro horas na sombra e, quando se via, a luz explodia na boca do Engenho Alto.
Isto acontecia na época mais fria do ano. Apesar do sol, o mês invernoso era frio. Ou então, em ano de “cheia” chovia 15 dias e só parava quando se fazia a novena a Santo Amaro. Era a coisa melhor que havia, viajar de carro de boi por dentro da mata. Com sombra e frio. Com alegria.
Outro prazer que a gente tinha. Ir às missas dos domingos, em Gameleira. Atravessava-se o rio de balsa, com carro de boi e tudo. Era difícil arrumar aqueles bois na balsa. Mas balsa não vira. Afundava meio palmo, medido na canela dos bois, e chegava do outro lado, sem perigo. Mesmo assim a gente morria de medo que fosse tudo para o fundo do rio, onde contavam que morava uma cobra da grossura de uma barrica e do tamanho do trem das sete. O trem das sete era grande. A locomotiva, quatro vagões de passageiros e três de carga. O tamanho maior que havia. O tamanho da cobra, que morava no fundo do Serinhaém.
De noitinha, lá uma vez perdida, havia música no terraço. Uma harmônica, um triângulo e uma viola de 12 cordas. O rapazinho do triângulo cantava com uma voz presa no peito:
Acorda, linda, vem ver
Acorda, linda, vem cá
Se é bonito, tem que ver
Dois navios correr no mar
A maioria daquela gente nunca tinha visto o mar. Com a exceção das empregadas que iam e vinham, conosco, duas vezes por ano ao Recife, ninguém tinha visto ainda o mar. O cocheiro perguntou um dia ao meu irmão:
― O mar é só de água ou tem plantação dentro?
Meu irmão explicou, como pôde, o que era o mar. E o homem, depois de entender, quis saber mais:
— Mas esse mar que passa lá no Recife pertence à usina ou é do governo?
Depois de jantar com o meu parente Cícero Dias, do Engenho Jundiá, pensei horas nessas coisas. Cícero veio de Pernambuco, de Jundiá mesmo, onde ficou o mais que pôde, pescando traíra no riacho e dormindo na rede do terraço. Quem é de engenho pode passar 50 anos sem voltar. Pode ficar em Paris, em Nova York, onde for... Quando volta, sente que não desacostumou. O corpo descansa onde deita. A boca fica feliz de tudo o que come. O olhar se acende em tudo o que vê.