O pernambucano Antônio Maria (1921/1964) foi narrador de jogos de futebol, diretor de rádio, apresentador de programas de televisão, redator de humorismo, cronista, autor de jingles, compositor e, a menos conhecida de suas performances, caricaturista. Em sua passagem pela imprensa do Rio, principalmente em O Jornal, entre 1962 e 1964, ele próprio ilustrava algumas de suas colunas. Podia não ter muita técnica, mas tinha personalidade.
Um dos truques de Maria para fazer suas colunas de jornal (trabalhava demais) era responder cartas dos leitores. Fernando Augusto Lima lhe perguntou por que desenhava:
“Entrei para o rol dos caricaturistas para iniciar um grande movimento nacional pela caricatura. Não a que eu faço. Mas a caricatura que você faz, que os outros fazem, sempre sem vez. O Brasil é um país sem caricatura. Por isso, é um país triste. A caricatura é mais importante que o retrato”.
Em quase todos os desenhos, que assinava A. Maria, ele botava num canto a galinha Ivanov e o gato Profumo. Os nomes dos animais “homenageavam” dois personagens do grande escândalo da época (a modelo inglesa Christine Keeller mantinha um romance, em plena Guerra Fria, com o ministro John Profumo e o diplomata soviético Yevgeny Ivanov).
Algumas dessas caricaturas podem ser encontradas nos livros O jornal de Antônio Maria (Editora Saga, 1968, seleção de crônicas por Ivan Lessa) e Com vocês, Antônio Maria (Paz e Terra, 1994, seleção de crônicas feita por Alexandra Bertola). As que acompanham este texto foram tiradas de lá.
Para ilustrar “Há que escrever”, crônica publicada em 6/8/1963, um relato sobre a barra pesada das dezenas de laudas que precisava produzir diariamente, ele se desenhou. Está com o cachimbo no canto da boca (hábito que não conseguia evitar mesmo acabando de ter um enfarte) e tecla à máquina. À sua frente, a lista com as tarefas do dia (“O Jornal, Mayrink Veiga...”). Na parede, dois sarros com amigos. Uma caricatura de Vinicius de Moraes (“Trabalha, Antônio. Escreve. Há tempo sim. Em meia hora tu fazes um Vinicius, com todos os adornos”) e a reprodução da foto de um halterofilista. No final do texto, como se fosse um PS, ele explica quem seria: “É Millôr Fernandes antes de se entregar à televisão”.
Em “As ruas” (22/8/1963), Antônio Maria focaliza outro de seus grandes amigos, Di Cavalcanti. Diz que o pintor escreve um livro sobre as ruas do Rio (jamais publicado) e teria descoberto na Penha a Rua da Coragem (“o calor é tanto que as pessoas, aflitas, se abraçam à placa da rua, a única coisa que não é morna”). A ilustração é a figura de Di (aos pés, a inscrição Laís Modas, marca famosa de uma amiga de Maria, como se o pintor fosse vestido pela grife), a placa da rua, o gato Profumo, a ave Ivanov e um cachimbo com destaque para a marca “Dunhill”. Há também um sol, de óculos, outra de suas marcas.
Vinicius reaparece como tema da crônica “O poeta quando jovem” (27/7/1963). Ele teria recusado dois milhões de cruzeiros por uma reportagem, pois teria que mostrar “fotografias impublicáveis”, como uma, de 1927, em que era “beijado e mordido por centenas de mulheres” no dia da chegada do hidroavião português Argos. “Nesse dia a multidão confundiu Vinicius com Sarmento de Beires, comandante da belonave portuguesa. No desenho, o poeta, numa visão retrospectiva de AM, medita. Contava então dezessete anos.” Era alguma piada privada entre os dois, mas ficou sem explicação. Na ilustração, o jovem Vinicius segura um exemplar do Kama Sutra.
Sai Vinicius e lá vem de volta Di. Maria escreve “Aniversário de Emiliano” (9/9/2021) e louva as semelhanças dos dois (“Somos perecíveis como as flores. Nosso futuro é o “daqui a pouco”, e se não houver “daqui a pouco”, melhor para os que ficarem livres de nós. De que serve esse apego ao futuro, se a capital de Honduras é Tegucigalpa”.) No desenho, em poucos traços faz uma caricatura de Di e legenda “JK65 e Di66”. É uma brincadeira com a idade do aniversariante e a promessa do político de se candidatar às eleições, o que acabou não acontecendo naquele ano por causa do golpe militar de 1964.
Maria gostava de passar as férias de julho em Petrópolis, na casa de amigos, e a cidade era tema constante de suas crônicas. Em “Petrópolis em julho” (2/7/1963), ele escreve sobre a relação dos homens que sobem a serra para uma temporada e as moças da cidade. “Ah, deixai em paz as moças de Petrópolis. Deixai que elas escolham seus namorados petropolitanos, como elas, louros e plácidos, como elas. Nossa homenagem à moça de Petrópolis, tão loura e bem-comportada!”. Na ilustração, um homem paquera uma moça enquanto todo o resto do quadro é recheado de marcas do comércio da cidade.
Antônio Maria, nascido em 17 de março de 1921, morto em 15 de outubro de 1964, entrou para a história da cultura brasileira como o homem das canções tristes, das crônicas sentimentais sobre a infância e a vida solitária na noite do Rio – mas foi também um grande humorista. Em 21 de agosto de 1963, ele respondeu na coluna de O Jornal a um certo Pederneiras Pádua (muitas dessas cartas eram inventadas e parece ser o caso dessa). O leitor diz que “desde os 15 anos me abstive de comer carne animal”, e começa uma longa apologia dos vegetarianos. Está com 55 anos e se diz com um físico de sucesso nas praias. “Além disso, pertencendo a uma família de carecas, minha cabeleira é basta e negra. Gostaria que o senhor citasse o meu exemplo a milhares de jovens que engordam e envelhecem antes dos trinta. Confio em sua costumeira bondade”.
Maria responde dizendo que, “segundo os dados que você me enviou, Pederneiras Pádua, fiz-lhe a caricatura e gostaria muito de saber se está parecida” – e lá está um sujeito com um pescoço todo desengonçado, um tórax de parrudo com pernas de raquítico, e um cabelo parecendo cheio de caspa. Tudo sob os olhares impressionados de uma mulher de biquíni e a galinha Ivanov.
* Joaquim Ferreira dos Santos é carioca, jornalista e escreve às segundas-feiras no jornal O Globo. É autor de vários livros, entre eles Feliz 1958, o ano que não devia acabar e as biografias de Leila Diniz (Uma revolução na praia), Antônio Maria (Um homem chamado Maria) e Zózimo Barrozo do Amaral (Enquanto houver champanhe, há esperança). Suas crônicas foram reunidas nos livros Em busca do borogodó perdido, Minhas amigas e O que as mulheres procuram na bolsa.