Fonte: Com vocês, Antônio Maria, Paz  e Terra, 1994, pp. 227-228. 

Há que escrever, Antônio. Esquece Cabo Frio, esquece Petrópolis, esquece-te. É preciso ganhar mais alguns cruzeiros. Não é que sejas ambicioso. Mas os governos, vários, desvalorizaram teus salários. Só a renúncia do Jânio, sabe quanto reduziu em teus salários? E as crises que se sucederam? Ah, não faças já a exegese da crise!

Esquece,  Antônio, a cama que trouxeste da Santa Casa de Saúde. A que levanta a cabeceira e, se quiseres, tuas pernas. Cama de manivela, boa de deitar e ficar pensando. Pensando em nada em tudo. Eles pensam que não. Mas há liberdade de pensamento. A única liberdade realmente preservada. E tu pensavas, para a frente e para trás, para os lados, para cima e para baixo. E fumava teus cachimbos, um após o outro, preocupadíssimo com a aventura errante de Vinicius de Moraes.

Trabalhavas muito, é verdade. Mas é preciso trabalhar três vezes mais. E não é feio, não. Feio é tomar um avião, ir a Brasília e pedir a Jango uma moleza, no estrangeiro. É cedo, Antônio, para pedires uma moleza. Tua cabeça ainda pensa, seu acanhamento ainda funciona, teu coração ainda ama. Então, trabalha.

Há duas vidas: uma temporal e outra eterna. A temporal é como diz a palavra: "temporal". Tens que defender o barco, senão ele afunda. A eterna é um paraíso, e lá está Jayme Ovalle, tocando seu violão de esquerda (Ovalle era canhoto), aquela modinha-cuja escreveu-a Bandeira:

Por sobre a solidão do mar
a lua flutua
e uma ternura singular
palpita em cada coração.

E tua música? Espera, Antônio. Faze uma ou duas canções com o João Roberto Kelly, e espera um pouco. O "Ninguém me ama" ainda está tocando no mundo inteiro. Dá para alguns gastos de fim de ano. Há quantos anos o "Ninguém me ama" paga as castanhas do teu Natal? Uns dez. Mas trabalha, Antônio. Escreve. E a prancheta? Há tempo, sim. Em meia hora tu fazes um Vinicius, com todos os adornos. Quinze minutos se ficares retocando.

E aqui começa uma vida nova. Mais uma vida nova. A velha era mais calminha. Não há de ser nada. A vida fica nova, de dois em dois anos, e tu te tens habituado. E o coração? Ah, vai bem de batimentos. Então deixa para lá e escreve. Lembra-te que o sertanejo é antes de tudo um forte, o preço da liberdade é a eterna vigilância, e a plateia brasileira é a mais exigente do mundo.

E aquele teu sonho de passar o inverno em Petrópolis, o verão em Cabo Frio com um novembro-dezembro na Europa? Ah, Antônio, esquece isso. Isso é para quem soube se cuidar cedo, guardar salário, ter um pé-de-meia, assim como o deputado Pedroso. 

antonio-maria