Fonte: Com vocês, Antônio Maria, Paz e Terra, 1994, pp. 148-150. 

Di Cavalcanti nasceu a 6 de setembro de 1897 e a prova disto é que na sexta-feira, às 11h:10, fez 66 anos. Fui lá levar-lhe uma garrafa de uísque, que entreguei com estas palavras de doce arcaísmo:

― Aqui está um mimo.

Gosto muito de Emiliano, de sua arte, de sua inteligência, de sua cultura e de sua juventude. É um homem que não cede ao menor e ao pior em nenhum momento da vida. Alegra-me o seu desprezo pelas pessoas a quem desprezo. Sua sensualíssima devoção pelas coisas e pessoas física ou espiritualmente belas. Além disso, é, como eu disse, um homem que chora, se sente com razão. Já o vi em todas as alegrias e em todas as desgraças. Num caso e noutro, sua felicidade estava intacta. Sua constante felicidade, que independe de sua alegria e de sua dor.

Das minhas viagens, a melhor que fiz foi aquela em que encontrei Di Cavalcanti em Paris. Mostrou-me uma Paris mais séria, bonita, uma Paris a pé pelas ruas transversas do Boulevard Saint Germain. Rue de Bourgogne, rue de Martignac, onde fica a igreja de Santa Clotilde, rue de Bellechasse, rue du Bac... Ah, revisores meus, escrevei certo os nomes dessas ruazinhas cujas placas estão em meus olhos, como a pequenina Saint Benoît, que, passando por Apollinaire, dá na cara da igreja de Saint Germain des Prés!

Os brasileiros insistem em chamar Saint Germain "des Près", com acento grave. Mas, mesmo assim, não transformam a igrejinha, fria por dentro, antiga por fora, onde tanto rezei para encontrar tudo o que ainda não havia. Ao lado, a pracinha Furstenberg, tão pequena, quase um pátio, tão grande, sempre em nossa lembrança.

Devia escrever sobre Di Cavalcanti, que fez anos, e não sobre Paris, separada de mim, para sempre, pela minha pobreza. Somos dois pobres Emilianos. As duas únicas pessoas "já velhinhas" que moram em casa alugada! A independência de quem não tem casa própria. A gente implica com o chuveiro, com a prise do bidê e se muda. Só eu e Emiliano podemos fazer isso! Ah, o futuro! Nós não temos nada a ver com o futuro. Somos perecíveis, como as flores. Nosso futuro é o "daqui a pouco", melhor para os que ficarem livres de nós. De que serve esse apego ao futuro, se a capital de Honduras é Tegucigalpa.

De tudo que escrevi, na vida, só quatro versos teria coragem de publicar, porque são perfeitos. Porque contêm a angústia das origens noturnas... e ninguém entende. Devem ser cantados com a música de "Ninguém me ama": 

Emiliano
Emiliquer
Emilichama
Di Cavalcanti

No mais, toda a poesia é pretensiosa, ostensiva, desnorteada e vã. 

antonio-maria