Nos dois lados do balcão

Alfaiataria Americana, de João Antônio Ribeiro, Rua do Bonfim, Diamantina-MG, 1920 década. Foto de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Jamais se saberá se Lima Barreto comprou alguma coisa naquela manhã de 1921 em que saiu de casa, no Méier, rumo a uma feira livre, novidade que um burocrata do Ministério da Agricultura, Dulfe Pinheiro Machado, futuro ministro de Getúlio Vargas, implantara no Rio de Janeiro. Cronicamente desmonetizado que era, o mais provável é que nosso escriba não tenha comprado nada – muito menos umas bruxas de pano, recheadas de serragem, que lhe pareceu destoarem num território supostamente exclusivo de verduras e legumes.

Até então encantado com a “lindeza de moças e senhoras”, relata Lima Barreto em Feiras livres, ficou muito irritado – e, bem mais que ele, o vendedor das tais bruxas, deflagrando um bafafá que requereu a presença da Lei, na pessoa de um tenente e um capitão. De repente, o que era crônica pode dar a impressão de haver-se convertido em notícia policial, quando o Lima, brandindo linguagem figurada, conta que o comerciante, de nome Bragalhães, “foi pelos ares”. Curiosamente, também em outro escrito seu, No "mafuá"dos padres, haverá agentes da ordem – no caso, um soldado e um alferes que, num leilão, brigam por um carneiro. Qualquer que seja o resultado, a disputa terá como ganhadora uma terceira pessoa, a Candinha, que nem está ali – e dois perdedores, adivinhe quem...

Mas voltemos às feiras livres, inspiração também de Rachel de Queiroz, moradora do Rio em visita a São Paulo em 1946 – e, ali, à feira do Arouche, onde o que mais a interessou pode ter sido não exatamente algo à venda, e sim a beleza de vendedoras de origem japonesa e italiana, tipos pouco encontradiços nas feiras cariocas. Nas quais, aliás, Paulo Mendes Campos haverá de denunciar, no início dos anos 1950, a existência de um golpe de feira, aplicado por vendedores desonestos, dados a entregar ao comprador, dissimuladamente, algo inferior ao que ele havia escolhido. Panorama bem diverso daquele a que Paulo se acostumara em sua infância belo-horizontina, tema da bela e delicada As horas antigas: o universo de uma gente simples que, do portão da rua, batia palmas ou gritava “ô de casa” (campainha era luxo de umas poucas residências), oferecendo de tudo – de lenha para o fogão, frutas, hortaliças, leite, carne, a uma dobradinha pronta para ir à mesa. Ao time dos feirantes desonestos, o cronista poderia acrescentar o personagem de As duas faces de um caixeiro: um convincente vendedor de aparelhos de televisão que, quando isso lhe convenha, não hesita em desqualificar, diante do mesmo possível comprador, o artigo cujas virtudes louvara, enfaticamente, apenas um minuto atrás.

Assim como seu confrade mineiro, Rachel de Queiroz, num momento ao menos teve um pé-atrás com o pessoal por detrás do balcão das lojas em geral. Foi no final dos anos 1940, quando lhe pareceu que algo mudara nos usos e costumes do comércio varejista. “Antigamente”, rememorou ela, “qualquer freguês, dentro de uma loja, tinha a sensação de que era um rei.” E eis que então, por fatores vários, como “o aumento dos ordenados” e “as economias de pessoal por parte dos patrões”, o quadro mudou radicalmente: “Razão, quem a tem, hoje e sempre, é o caixeiro”.

O novo figurino das relações comerciais talvez não se aplicasse ao armarinho, a julgar pela enorme simpatia com que Rachel, na mesma época, escreveu sobre as lojas de linhas e agulhas. Tratava-se (e se trata ainda, sete décadas depois) de território feminino, pelo menos na Ilha do Governador, onde a cronista tinha a sua casa: “Podem os cavalheiros cantar na sua lira as delícias do botequim e da cerveja gelada”, contrapôs a escritora cearense; “nós, as mulheres da ilha, damos preferência ao armarinho.”

Paulo Mendes Campos haveria com certeza de confirmar o que disse Rachel. Já cinquentão, na década de 1970, ele amava o sossego de sua casa na serra de Petrópolis, onde passava os fins de semana, simples mas provida “de todos os luxos da quietude rural”. Nem por isso dispensava “um supérfluo essencial”: a alma de “uma venda de beira de estrada”, em especial aquela de que fala em O homem que calculava. A criatura que dá título à crônica vem a ser o dono do estabelecimento, e o fato de que utilize ruidosa modernidade – uma calculadora – não compromete, aos olhos do cronista e poeta, o encanto do lugar, onde tudo se harmoniza.

Em Confissões de um jovem editor, quem está do outro lado do balcão, ainda que sem calculadora, é Rubem Braga, que registra na crônica assim intitulada a sua perplexidade ante o fato de se ver, aos 47 anos, pela primeira vez metido na inesperada pele de empresário, pois vinha de criar a Editora do Autor, em sociedade com Fernando Sabino e o advogado Walter Acosta. “Que fazer”, suspira o Sabiá da Crônica, “se virei homem de negócios?” Por feitio e temperamento, seu lado do balcão é outro, até para que possa, na condição de consumidor, reclamar das perebas que vê no comportamento de maus negociantes. Em Camelôs, investe furiosamente contra os vendedores de aves que, no afã de tornar mais atraente a mercadoria que oferecem, não hesitam em cegá-las, para que assim deixem de voar e cantem mais.

O Braga não poupa, igualmente, na mesma crônica, aqueles que chama de “camelôs cívicos”: os políticos que, em tempo de eleição, atormentam o cidadão com seus alto-falantes e maculam os muros com cartazes, anunciando-se como “produtos de primeira classe”. A dois dias do Natal, o cronista não chega a tomar as dores do Menino cujo nascimento será uma vez mais comemorado, mas faz saber o desconforto que lhe causa o alarido açucarado dos anunciantes em busca de cifrões. “A publicidade faz sua grande farra de fim de ano, e nós é que devemos pagá-la”, protesta Rubem Braga, e despeja seu justo sarcasmo: “Não é o homem da empresa que nos saúda alegremente, de cristão para cristão, é a própria sociedade anônima que se faz afetuosa, que exprime os bons sentimentos que empolgam seu espírito de estatuto ou sua alma de balancete.” Na mão oposta, em Negócio de menino o cronista não esconde a ternura pelo garoto que, num diálogo memorável, esgota seu arsenal de convencimento, na esperança de que o adulto à sua frente lhe venda um passarinho, o coleiro, o melro ou o curió, um dos três, não lhe importa qual, e pinga no final, em desespero, o que pode ser sua melhor cartada.