Fonte: Os bares morrem numa quarta-feira, Ática, 1980, pp. 114-115. Publicada, originalmente, na revista Manchete, de 27/08/1977.
Tenho uma casa a meio duma encosta de Petrópolis, perto de Araras. João Saldanha, dado a literaturas russas, diz que se trata duma dacha, o que nos romantiza, mas no fundo é mesmo um barraco bem bolado por Zanine.
Entre águas e tons vegetais que vão passando, passo os fins de semana. Numa esperança aquecida, a de inverter um dia a equação urbana: residir lá, dar o endereço de lá, e ter um quarto-sala de campo no Leblon. Ainda não dá, mas chego lá.
Na minha idade só certas riquezas supérfluas são essenciais. Um supérfluo essencial ao coração brasileiro da minha idade é a venda, a venda de beira de estrada, cavalos à porta, sacos e mantimentos, lampiões e caçarolas pendurados, balcões de tábuas honestas, um aroma rico do nacionalismo do fubá e da cachaça. E o dono da venda, claro. Este tem de ter nascido para ser dono de venda, como o torresmo nasceu para o tutu; do contrário o nosso sonho se desarruma, o cenário é vazio, fica faltando a alma da venda.
Nos primeiros tempos da Grota do Jacob (é o lindo nome do lugar), não me apercebi que uma função humana me faltava ali, apesar de todos aqueles luxos da quietude rural. Fui apanhado uma tarde, sem mais nem menos, por volta das cinco horas, quando me espichara no capim. De repente, a água do arroio parou de cantar o que eu sabia de cor e começou a dizer com doçura que em alguma parte existia uma venda. Uma o quê, perguntei. Uma venda, aquela venda. Um sabiá-laranjeira desceu do galho da quaresma para o chão e queria saber o que eu andava a fazer ali, era a hora da venda. E aí foi logo aquela prosopopeia, as coisas inanimadas e os bichos começando a proclamar ao mesmo tempo que estava na hora de ir à venda, que eu não podia deixar de ir à venda, que eu era um insensível se não fosse à venda.
Cedi à unanimidade da natureza, comunicando à mulher que era a hora de ir à venda. Ela não entendeu, mas o filho veio comigo, e em poucos minutos estávamos lá a discutir com seu Ramiro qual a melhor maneira de ferrar um cavalo. Era a glória.
A venda aquela não podia ser mais igual à dos meus sonhos. Tudo que é preciso no seu lugar. As pessoas chegando na hora certa, com as caras que deviam ter, cuspindo na hora de cuspir, comprando, bem devagarzinho, o que deviam comprar, dizendo infalivelmente as coisas que eu esperava ouvir. E o nome também era lindo: Mercearia Rio da Cidade.
Como se vê, tudo certinho, tudo igualzinho às vendas que eu conheci em menino.
Menos uma coisa que fazia tique-tique-tique... tleque-tleque... espiei atrás dum saco de milho e descobri seu Ramiro a fazer operações com uma máquina de calcular. Isto era novidade na venda que eu carregava comigo há duzentos anos. Que é isto, seu Ramiro? Máquina de calcular, respondeu o Ramiro com um orgulho tecnocrata. Duzentas de mortadela, tique-tique-tique... um quilo de feijão mulatinho, tique-tique-tique... um litro de querosene.... Depois, tleque-tleque-tleque, ele cortava o papel e estendia a fatura ao consumidor. Só não disfarçava bem aquele ar tecnológico.
Mas não ficou nisso. Meses depois, quando cheguei às cinco horas, sempre a mando dos sabiás, seu Ramiro, com um ar premiado, me levou para trás do saco de milho: tinha comprado uma outra. Esta ainda é melhor, me disse, começando a operar as teclas com um ânimo de artista.
Nesse dia, saí da venda filosofando o seguinte: é isso mesmo, civilização é você construir uma central eletrônica sem esquecer as importâncias do bolinho de bacalhau. Ou de feijão, que ainda é melhor.