Podem os cavalheiros cantar na sua lira as delícias do botequim e da cerveja gelada; nós, mulheres da ilha, damos preferência ao armarinho.

Vede por exemplo o armarinho da Cova da Onça: discreto e familiar no seu canto de rua, com dois pés de jasmim na frente, o balcão na antiga sala de visitas, a nossa amiga e vizinha servindo os botões e as fitas, aquilo é na verdade um lugar de repouso e convivência, onde se trocam sugestões para vestidos, receitas de cozinha e dietas de criança. Vai-se ao armarinho quase como se está em casa, sem pintura, sem penteado, muitas vezes com o mesmo tamanco com que se anda pelo quintal a tratar das plantas e das galinhas. Aliás, em tempo de chuvarada e lama o tamanco é mesmo o calçado oficial de todos daqui, até para ir mais longe: à farmácia, ao açougue, à policlínica, quanto mais ao armarinho, que é bem junto, um salto de pulga.

O que a gente não entende são as dificuldades que opõe a Prefeitura do Distrito à abertura de lojas tipo armarinho (não sei se há obstáculos idênticos para outras lojas) nos quarteirões residenciais. As restrições são tão severas, as exigências tão insuperáveis que abrir um armarinho numa rua suburbana é áfrica mais difícil do que abrir um magazin de luxo na avenida. Por quê? Ninguém o entende. Pois a boa lógica seria que as lojas de bairro ficassem justamente ao alcance das famílias que nelas adquiririam as suas utilidades sem esforço por demais. Toda zona residencial, mormente as modestas, onde não há transportes coletivos, precisam dispor de um lugar onde a gente possa mandar o nosso filho pequeno ou nossa filha mocinha apanharem um carretel de linha ou um tubo de pasta de dentes sem risco de ouvirem pilhérias inconvenientes, de serem esmagados por um caminhão, ou serem assaltados por bandidos que lhes queiram tomar os cinco cruzeiros da compra.

Não dizem os jornais que esta cidade do Rio de Janeiro há muito tempo que anda transformada numa espécie de Paris do tempo dos Pardaillan, na qual se degolava um homem por causa de uma moeda de prata?

Mas quem governa inventa lá as suas regras ― como é que as chamam? Posturas. Inventam as posturas que bem lhes parece, e uma vez que há posturas há de haver quem as respeite, senão para que as inventariam? E cá estamos nós para obedecer.

Se as autoridades me ouvissem, eu fazia um convite para que visitassem os nossos armarinhos e vissem que ilhas de repouso e poesia são eles no meio de nossas dificuldades cotidianas. Por algumas moedas é lá que compramos as poucas coisas que embelezam a vida das famílias pobres, das mulheres pobres. O frasco de cheiro e o batom para as moças, os cavalinhos de massa e as bolas de gude para os garotos, os bicos de papel recortado para as prateleiras da cozinha, o pó de arroz, o sabonete, a fita, as rendas para a roupa branca. As máscaras de carnaval, só colares vistosos, os cintos de matéria plástica, os brincos, os anéis, as travessas de cabelo enfeitadas com pingo d’água. O armarinho é a nossa joalheria de subúrbio, a nossa perfumaria, ― refúgio do eterno feminino na desolação desta vida tão dura, em que moças nascem, crescem e morrem sem nunca haverem possuído uma joia de verdade ― mas sem jamais sentirem a falta delas porque desde a infância o armarinho as abasteceu com mais anéis e colares do que os teve Cleópatra, rainha do Egito? Que importa fossem de plaquê e vidro ou celuloide? Brilhavam e enfeitavam e realçavam a beleza, tinham o espírito da joia, que é mais importante do que o seu valor intrínseco.

Vinde ver o armarinho, senhoras autoridades. E quando os virdes tão alegres com suas grinaldas de fitas e de rendão decorando as portas, os balcões enfeitados de botões de galalite e cornetinhas de celuloide compreendereis o quanto valem eles, para nossa alegria e para nosso conforto. E então rasgareis as velhas posturas e ordenareis posturas novas nas quais se há de determinar a abertura de um armarinho em cada esquina de rua e prêmios oficiais serão dados aos melhores sortidos, aos mais bem enfeitados, aos mais barateiros ou aos mais estimados na vizinhança.

rachel-de-queiroz
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