Antigamente, qualquer freguês, dentro de uma loja, tinha a sensação de que era rei. Pedisse o que pedisse, fossem quilômetros de veludo ou frasquinhos de ouro em pó, lá estava para satisfazê-lo um escravo solícito, que não se importava de pôr abaixo algumas toneladas de pano para encontrar exatamente, precisamente, a nuança sutilíssima da amostra, ou, de joelhos a seus pés, lhe provava trezentos e oitenta pares de sapato, recebendo depois, com um sorriso, a declaração de que nenhum daqueles trezentos e oitenta pares era o sapato dos nossos sonhos, Havia mulheres que empregavam uma habilidade sádica no oficio de ser freguesa, e, enquanto não viam apontar lágrimas nos olhos da caixeira, ou tremer o canto da lábio do caixeiro, não se davam por satisfeitas.

Depois, veio a vida difícil, a guerra com as suas carências, a deflação, o aumento dos ordenados, as economias de pessoal por parte dos patrões, e o panorama mudou. O fenômeno virou pelo avesso, e agora é do lado de cá do balcão que se encontram a paciência, a adulação, a concordância, o riso profissional. Reverteu-se o implacável axioma comercial segundo o qual “o freguês sempre tinha razão": razão, quem a tem, hoje e sempre, é o caixeiro. Dá gosto ver a humildade com que aquela senhora de penteado arrogante e dedos estrelando de brilhantes, suplica à caixeirinha que lhe deixe ver umas meias nylon; e melhor ainda é o desdém da pequena a dizer à dama que espere vez, que ainda tem duas freguesas na sua frente.

Aí, consola. É mais uma classe oprimida que se redime; pelo menos, esta desforra, tiram agora os pobres contra os ricos ― e se vingam dos trens de subúrbio, do almoço frio na lata, do sapato cambado, do casaco que não aquece. Quantos complexos se consertam por esse processo, quantas amarguras se desrecalcam, quanta vingança se satisfaz, dá gosto calcular.

Embora haja caixeiros que se excedam um pouco e espisoteiem além do limite a humildade do freguês. Habituaram-se a dizer não, e tem deles que tomaram tanto gosto ao gesto que já dizem não antes que o freguês abra a boca, da porta o recebem com cara de não, e mesmo quando têm nas prateleiras a mercadoria desejada, apresentam-na com restrições, lhe acentuam o preço alto, ou a procedência nacional, para não abrirem mão totalmente da sua atitude negativa, que para eles já vale como um princípio.

Mas isso são excessos naturais a todo recém-liberado. Quem quer que proclame a sua independência, depois de séculos de opressão, sente a necessidade íntima e invencível de massacrar um pouco o opressor. É isso resultado de uma respeitável lei da nossa natureza, chamada, segundo creio, a lei das compensações.

Além do mais ― e esta é a grande vantagem, ― criou a nova situação um aspecto inédito na atitude dos dois indivíduos que se colocam nos lados opostos do balcão: criou ou está criando entre freguês e caixeiro um processo de relações de pessoa para pessoa, independente de dinheiro, de interesse ou de obrigação. Hoje, se a caixeira nos sorri, se nos dá um conselho ou nos ajuda a arranjar o vestido na cabine de provas, a gente sabe que aquele gesto não está incluído na nota de venda, é pura simpatia humana, cordialidade da criatura pela criatura sua irmã, e pela qual logo sentimos uma gratidão transbordante. Neste mar de agruras e de filas em que nos debatemos mal sabe a vendeuse quanto conforto representa um sorriso ou um sinal de boa vontade ― mesmo que nos digam não ― que não tem a alcatra, do bife, nem o cretone dos lençóis, nem a peça da máquina de costura, nem o sapato do nosso orçamento.

Chega a ser irresistível, chega a pôr lágrimas nos olhos, esse encontro inesperado com o velho leite da bondade humana, hoje tão escasso quanto qualquer outro leite.

Ainda outro dia andava eu melancolicamente vendo vitrinas, em procura de um casaco que não havia, um casaco especial que me protegesse do frio e satisfizesse minhas reivindicações no assunto que são inúmeras e sutis. Já desistia de o encontrar, quando numa loja na esquina do Ouvidor com Gonçalves Dias, vi primeiro a moça, depois o casaco. Ela era bonita, loura, fresca como uma rosa, teria dezoito anos e estava na porta, talvez posta ali pelo gerente, como um anúncio da casa. O casaco, na vitrina, não era melhor nem pior que os demais, e não posso dizer que fosse barato. Já eu repelira vários iguais àquele e me detive a olhá-lo mais por fadiga do que por interesse. Afinal voltei-me e perguntei o preço à mocinha da porta. E ela condoeu-se de mim com tal carinho, e me declarou o preço, e me trouxe para ver mais dois casacos, e me deu uma cadeira, e se mostrou tão meigamente encantada com o meu bom gosto por escolher assim, da primeira vista o melhor casaco que havia na casa e quiçá no Rio de Janeiro ― tudo tão espontâneo, tão meigo, tão sem alarde, que comprei o casaco, mesmo sem o desejar muito depois de o provar, comprei o que ela quis, paguei, e de lá saí com o coração aquecido, os pés menos doídos, e fui tornar a minha barca com o sentimento consolador de que a espécie humana não degenerou de todo. ― Já se passou mais de semana do caso; o casaco já levou chuva e enfeiou, mas a lembrança da mocinha loura não me saiu do coração; e de vez em quando me reina chegar na loja da esquina, chamar de parte a mocinha e perguntar se ela não quer que eu a adote como minha filha; ou, fosse eu a milionária do Santíssimo, já teria assinado testamento ao seu favor.

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