Periódico
Manchete, nº 396
Publicada também em: livro Homenzinho na ventania, de 1962.

– Menino, vai perguntar à tua mãe se quer comprar dobradinha.

Em latas de banha de cinco quilos, a estranha coisa (não sabia o que era e se me afigurava vagamente obsceno) era coberta com folhas de bananeira.

– Hoje não – respondia da varanda, sem erguer os olhos do romance da Coleção Terramarear.

– Vai perguntar – insistia a mais velha das mulheres –, diz que está fresquinha mesmo.

Eu ia lá dentro e voltava:

– Não quer.

A vendedora olhava-me com o rabo dos olhos, já fazendo esquerda volver, desconfiada, ressentida, e ia bater no vizinho. Bater é modo de falar. Se não tivesse ninguém na varanda ou na janela (quase sempre tinha), ela gritava "ô de casa". As latas eram por demais pesadas, os compradores por demais improváveis (nunca vi ninguém comprar dobradinha), não pagava a pena depositar a carga no chão para bater palmas.

Mas as palmas dos outros vendedores soavam até a hora do almoço nas compridas manhãs daquele tempo. Poucas casas, em geral só as de médicos e dentistas, davam-se ao luxo da campainha. Era o lenheiro com a sua tropa de burricos, o vendedor de gravetos, o leiteiro, o geleiro com as suas barras fumegantes, o verdureiro com os seus cestos verdíssimos, o bananeiro, o laranjeiro, prontos todos a fazer substanciais abatimentos a quem comprasse o cento, era o vendedor de jabuticabas, era o caixeiro do armazém descendo com estrépito e impaciência duma camioneta, era o moço do açougue, era o carteiro, era o menino da loja que trazia o par de sapatos velhos, porque o novo ia sempre nos pés depois do ato da compra.

A manhã crescia. Vinham os escolares e um eventual trote do Esquadrão de Cavalaria. Nas proximidades do meio-dia, os funcionários públicos almoçados subiam de bonde ou a pé os caminhos da praça da Liberdade. À tarde, as senhoras andavam às compras no centro. Ao cair da tardinha, o céu fazia luzes e lumes, tons e entretons, fogos e fogaréus, e os passarinhos inauguravam nas copas dos fícus ruidosos ninhos coletivos, enquanto os funcionários desciam em bandos, como feios pássaros de asas depenadas.

Quem era de ir para casa ia para casa; quem era de beber ia beber. Ah, como era repousante o chope ou a cachacinha depois da vagarosa fadiga burocrática! Como os passarinhos do crepúsculo cantavam dentro dos peitos montanheses! Como ficava doce e enigmático o ar, entre a cálida lembrança do sol deixada nas pedras e as aragens da boca da noite! Como era bom ser mineiro e melancólico às seis horas da tarde!

Depois de um momento coagulado entre o dia e a noite, escuro e espesso, os postes se iluminavam. Sentíamos então, no perfume das magnólias e no retinir de louças e alumínios, que tinha anoitecido. Noite de planalto, sem a mitologia do mar, noite alta, demorada, enxameada de estrelas, noite às vezes de ventos desatados, de trovoadas e relâmpagos espetaculares, de longas e retorcidas serpentinas elétricas. As famílias se recolhiam cedo, os próprios boêmios iam dormir antes de clarear a madrugada. Só os literatos e as meretrizes esperavam a denúncia dos galos. Na calada, os cascos de um cavalo sobre o asfalto. O silêncio. Os cães a vociferar nos quintais e nas várzeas. O silêncio. Os cães. O silêncio. Até que os sinos viessem proclamar alegremente que a noite terminara.

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