Inevitavelmente eu me lembro daquela frase horrorosa, não sei de que autor, sobre pessoas que se reuniam na noite de 31 de dezembro “para providenciar a passagem do ano”.
Para muitos de nós, os inquietos, os desorganizados, a festa de fim de ano acaba sendo isso: mais uma providência a tomar. Outro problema. E ao lado dessa vaga alegria, dessa escassa boa vontade de Natal, há um outro sentimento mais frequente que nos assalta diante das vitrinas enfeitadas: a aflição de Natal. Recebo alguns cartões, raríssimos presentes, e me quedo perplexo. As árvores artificiais, as estrelas artificiais, todo esse mau gosto colorido das vitrinas, que a princípio é alegre, acaba sendo aflitivo: o Comércio faz uma estranha ofensiva contra o Consumidor, que recua, hesita, avança, foge, preso às peias de um orçamento medíocre.
“Comprem, comprem”! A Publicidade faz sua grande farra de fim de ano, e nós é que devemos pagá-la. Uma garrafa de bebida deixa de ser uma garrafa de bebida, é um mimo envolvido em cores álacres, cercado de frases festivas e exclamações: assim todas as coisas perdem seu ar honesto e vulgar, afetam uma gratuita alegria e convencional boa vontade. E a burguesia faz surrealismo sem o saber. Que existe de mais tocante e louco do que receber votos de feliz Natal e grandioso Ano Bom não de uma pessoa, mas de uma firma comercial, um banco, um ser jurídico? Não é o homem da empresa que nos saúda alegremente, de cristão para cristão: é a própria sociedade anônima que se faz afetuosa, que exprime os bons sentimentos que empolgam seu espírito de estatuto ou sua alma de balancete.
Estamos em casa tranquilos, vem o carteiro (que já deixou seus votos e sua intimação para não esquecer o “efetivo carteiro”, como diz o versinho) e nos traz um cartão pelo qual a “Coperval S.A.” nos deseja um bom 1953. É a “Coperval S.A.” uma senhora visivelmente lírica, amante de legendas douradas sobre fundo azul, com uma letrinha sentimentalmente inclinada para a direita, flores e anjos, sinos e badalar. O coração da Firma está batendo de afeto.
Sei que o remédio é sentar diante de uma folha de papel e fazer uma lista de amizades com endereços para mandar cartões; e, quando possível, mimos. Mas para isso é preciso ser inconsciente ou ter essa estranha coragem de fazer um balancete sentimental, admitir ou demitir pessoas de nossa lista, pesar a lembrança das criaturas humanas dentro de nosso peito, misturar saudade com consideração, conveniência, consideração, gratidão por algum serviço ou fineza, com amor ou simpatia gratuitos. É uma tarefa que sempre parecerá dura a qualquer pessoa sensível e ao mesmo tempo odiosa e melancólica. Há os esquecimentos, as omissões...
E na rua as lojas oferecem brilhantes aparelhos elétricos, livros, discos, cestas abundantes de comeres e beberes, facilidades de pagamento, falsos abonos, com imensos papais-noéis de sorriso comercial — toda uma alucinada orgia mercantil — em nome do menino Jesus, menino tão pobrezinho que se tivesse nascido num morro do Rio estaria talvez internado, se tivesse sorte para arranjar uma vaga naquele hospital que a prefeitura tem para crianças doentes e miseráveis — Hospital Jesus...