Narcisistas, mais ou menos como todo mundo, os mineiros vivem se perguntando o que é ser mineiro. Mas ninguém se lembra da polêmica que o Vinicius de Moraes desencadeou em 1944, quando deu aos mineiros uma receita de homem, para que deixassem de viver na sua cidade mórbida e parassem de contemplar o próprio umbigo. Eu me lembro e falo disto aqui.

Meu Deus do céu, será que além do (falso) enigma da Capitu, existe outro enigma a nos desafiar e a nos dividir? Pois é: parece que sim. Vira e mexe alguém se lembra de perguntar pelo enigma mineiro. Você sabia que Minas Gerais é um enigma? Todo mundo sabe que é um estado da federação, como está no mapa. Central, com aquele narigão que aponta no sentido de Brasília, mas sempre com saudade do mar. Quero ir para Minas, Minas não há mais — escreveu o poeta mineiro. O mesmo que saiu de lá de Itabira do Mato Dentro, passou anos em Belo Horizonte e depois veio morar no Rio. Aqui, viveu com saudade de Minas. Lá foi algumas vezes, até que Belo Horizonte virou Triste Horizonte e desfigurada, superpovoada, não lhe interessou mais. Já não era a cidade dos anos 20 e 30. Nem dos anos 40, quando lá o encontramos, o poeta Carlos Drummond de Andrade e nós, os que o Mário de Andrade chamou de “vintanistas”, porque tínhamos 20 anos.

Parece mentira, mas é verdade. Juro que tínhamos 20 anos. Inquietos, indagadores, angustiosos e angustiados 20 anos, como costumam ser os 20 anos de quem os tem. O poeta de Itabira se tornou o poeta do Brasil. Itabira é apenas um retrato na parede, mas como dói! O poeta de Minas. O poeta do claro enigma. Epa! Então é possível que Minas também, como Capitu, seja um enigma. Claro, ou falso. A mim já me perguntaram várias vezes: que é ser mineiro? É nascer em Minas, uai. E talvez seja sair de lá. Porque fora de lá, pouco importa há quanto tempo você esteja fora, todo mundo, é só você abrir a boca, vê logo que você é mineiro.

Há quem diga que ser mineiro é nunca tocar neste assunto. Se você tenta dizer o que é Minas, Minas se esquiva, dá no pé. O Guimarães Rosa escreveu um texto clássico, muito citado, sobre as almas encapotadas que vivem em Minas. Mas o Rosa, se fosse outro o tema, também inventaria um texto bem rosiano e cheio de mistério para dizer o que queria, ou não queria dizer. Desculpe se aparece aqui o meu umbigo, mas fui eu que encomendei esse texto ao Rosa.

Como todos os mineiros, ele também não escapou dessa fatalidade: tentou decifrar Minas. Então Minas, se precisa de ser decifrada, é mesmo um enigma. É e não é. Tudo na vida pede decifração, porque tudo esconde um enigma, agora verdadeiro, que se vê ou não se vê, segundo os olhos que olham e não segundo a coisa em si, a coisa olhada. O bom agora é ser mineiro, disse outro dia o governador Fleury. Foi bom que ele dissesse isto, porque em Minas alguém se lembrou de fazer mais uma vez esse passeio em torno do enigma de Minas.

Falso enigma, que no caso gira em torno da política e dos políticos mineiros. Ainda agora a Andréa Neves está preparando um livro sobre os 200 anos da morte do Tiradentes. Morte infame na forca. Seria um político mineiro, o Tiradentes? E logo nascido ali na mineiríssima zona de mineração, no Campo das Vertentes, em São João ou em São José del Rei. Não vou me meter nessa polêmica, porque vão dizer que sou suspeito, que sou de São João del Rei. Aqui, vá lá, banco o mineiro: passo. 

Morrer na forca não é resultado de uma atitude baseada no “cauteloso pouco a pouco”, na astúcia, na esperteza e na ronha que, dizem, caracterizam o político mineiro. Um sujeito que, montanhês, vive em cima do muro. Se for pesquisar a verdade histórica, Minas não é isto. Ou não é só isto. Tem o Tiradentes e tem uns tantos outros estouvados, capazes de dizer não (ou sim) na hora perigosa. O governador Fleury sabe disto, porque ele até tem um costado mineiro. 

Volta e meia, reaparece o tema e se repõe a pergunta sobre o enigma mineiro. A gente jura que não vai tocar mais neste assunto, mas lá vem uma hora que a pergunta reaparece e, zás, a gente cai na armadilha. Quando se dá conta, já está falando de Minas, de como é ser mineiro etc. Ai, que narcisismo! Todos os mineiros já caíram nesse pequeno abismo de sondar o que ora é mineiridade, ora é mineirice, ora é mineirismo. O Pedro Nava escreveu sobre o “país do uai”. O Ziraldo não diz duas palavras sem falar uai, sô. Se encontrar o Fidel em Havana, vai dizer cem vezes uai, sô!

Mas uma coisa que pouca gente sabe, ou se lembra, é que esta conversa fiada (fiada também porque é mineira) andou em cartaz nos anos 40. Procure o livro do Tristão de Athayde, A voz de Minas, que é um passeio ditirâmbico pelas Minas Gerais, ao seu passado, ao seu presente e ao seu futuro. Um hino a Minas, cantado por uma boca que não era mineira. Mas o Tristão, como o Fleury, tinha também um costado mineiro. Minas do pão e do lume, a estrela de Minas — era assim que se falava de Minas. Era a época da ditadura do Estado Novo e do “Manifesto Mineiro”, que pedia bem de mansinho que houvesse eleição e o Brasil voltasse ao regime democrático.

Foi nessa época que surgiu a polêmica em torno de Minas. Provocada por quem? Ora vejam só: pelo Vinicius de Moraes! O Vinicius tinha recém-saído da polêmica em torno do cinema mudo. Dessa polêmica dá notícia o belo livro O cinema de meus olhos, editado pela Companhia das Letras e organizado por Carlos Augusto Calil, que escreveu a introdução e as notas. Hoje parece mentira, mas essa discussão empolgou meio mundo. Não só os cinéfilos, ou os fãs, como se dizia dos fanáticos pelo cinema. Vinicius pertenceu ao primeiro cineclube do Brasil, o “Chaplin Club”, atraído pelo Octávio de Faria, o Plínio Sussekind Rocha e Almir Castro. Para eles, ser “talkista”, neologismo a partir do inglês talkie, era um sacrilégio. Uma conspurcação. Cinema tinha de ser mudo.

O Vinicius apareceu em Belo Horizonte pouco depois, em 1942, e lá conversamos muito sobre o cinema, a vida, a morte e o amor. Sobre a poesia. E também sobre Limite, do Mário Peixoto, e sobre O encouraçado Potemkin, do Eisenstein. E sobre Orson Welles. Em seguida a gente se encontrou no Rio. Um domingo de manhã, verão cheio de sol, ele marcou um encontro com o Paulo Mendes Campos e comigo no Bife de Ouro, no Copacabana Palace. Nós dois chegamos antes e ficamos esperando o poeta com os seus olhos verdes, para tomar um uísque sour.

Uma outra vez, o Fernando Sabino e eu ficamos de papo noite adentro com o Vinicius no Alcazar, esse mesmo que existe até hoje na av. Atlântica. Só que era muito diferente. Era outro, como era outro o ano. Ou o mundo, sei lá. Visto de hoje, tudo parece um filme de que a gente se lembra, mas não sabe direito como é mesmo o enredo. Entramos pela madrugada, o Vinicius, o Fernando e eu. Conversa vai, conversa vem, que é que a gente discutiu? Isso mesmo: Minas Gerais. O enigma mineiro!

Em outubro de 1944, depois desse nosso bate-papo, o Vinicius escreveu n’O Jornal, no suplemento literário, uma “Carta contra os escritores mineiros”. Como subtítulo, botou entre parênteses: “Por muito amar”. Suspeito que essa carta nunca mais foi publicada. Está esquecida. Mas naquele remoto ano, foi um barulho dos diabos. Um deus nos acuda. Todo mundo meteu o bedelho no debate e saíram dezenas de artigos, sobretudo, claro, em Minas. Gente houve que achou que o Vinicius queria que nós mineiros deixássemos de ser mineiros.

Depois de uma declaração de amor a Minas, em que eu entrei de tabela, e muito lisonjeado, o Vinicius fazia, entre outras, uma pergunta assim: “Por que vos recuseis a pensar escritores de Minas, além do pensamento de vós mesmos que vos ocupa todas as horas?”. Em seguida dizia com todas as letras que “os preconceitos vos abafam como o ar da seca”. E perguntava: “Por que não vos libertais?”. Amigo dos mineiros que já viviam no Rio, do Rodrigo M.F. de Andrade, do Carlos Drummond, do Pedro Nava, o Vinicius entendia que nós mineiros vivíamos metidos com os olhos para dentro de nós mesmos, “enclausurados em nossa cidade mórbida”. E de novo perguntava: “Por que amais a vossa desolação?” Segundo essa autêntica “receita de homem” que o Vinicius nos passou, nós precisávamos naquela altura de um santo remédio. Aqui está ele, nas palavras meio solenes do poeta: “Precisais de água, a água do mar, a água da mulher, a água da criação. Temeis errar: errai! Temeis desnudar a vossa nudez: desnudai-vos”.

Quatro decênios e picos depois, seria o caso de verificar se o Vinicius tinha razão. E quem sabe até de levantar toda a tempestade em copo d’água que se fez em torno desse (falso) enigma mineiro. Igualzinho ao cinema mudo, que acabou falado e sonoro. Minas também de lá pra cá mudou muito — ou não? Será que continua muda e com horror à sonorização? Será que trabalha (ou não trabalha) em silêncio? Respondam os que sabem, os que estão perguntando de novo o que é mineiridade. Foi o que eu disse à repórter que me telefonou para falar desse velho tema do (falso) enigma mineiro. A mim já me basta o enigma da Capitu…

otto-lara-resende
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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