Fonte: O mais estranho dos países. São Paulo, Companhia das Letras, 2013, pp. 227-230.

Depois duma permanência de vários meses na Europa, onde participou de vários festivais cinematográficos, Vinicius me deu uma entrevista para o Diário Carioca de 31 de outubro de 1952.

Inicialmente o poeta enumera as coisas de que gostou na Europa-1952:

Ter conhecido Francette Rio Branco, um poeta de futuro e um lindo ser humano.

Ter visto o meu velho amigo e jornalista Novais Teixeira. 

Ter sido abraçado efusivamente por Orson Welles no nosso primeiro encontro desde Hollywood, isto é, desde 1947. 

Ter comido peixe na cidadezinha mediterrânea de La Napoule. 

Ter revisto Rien que les heures de Alberto Cavalcanti, L'Atalante de Jean Vigo, Cidadão Kane de Orson Welles, M. Verdoux de Chaplin. 

Ter beijado a mão de Greta Garbo.

Ter conhecido o poeta francês Jean-Georges Rueff e ter trabalhado em Estrasburgo com ele, num restaurante das margens do Reno, na revisão da tradução das minhas Cinco elegias

Ter conhecido as catedrais de Colônia, Estrasburgo (esta sob tremenda tempestade) e Florença. 

Ter visto o museu Van Gogh na Holanda e, lá ainda, o que me faltava de mais importante em Rembrandt. 

Ter visto a obra mais recente de Braque (um grande salto). 

Ter conhecido Françoise Rosay em Berlim. 

Ter visto o local onde morreu Hitler. 

Ter comido galinha de leite assada num restaurante de Frankfurt, regada a vinho superior do Reno. 

Ter visto O diálogo das carmelitas, de Georges Bernanos (grande peça). 

Ter tomado o fio de uma amizade que a vida interrompeu. 

Ter conhecido Florença. 

Ter conhecido a obra dos primitivos italianos, de Giotto, Donatello, Angelico, Boticelli, Ghirlandaio; e a Capela dos Médici, de Michelangelo. 

Ter conhecido o escritor uruguaio José Maria Podestàd. 

Ter dado um passeio de gôndola pelos pequenos canais interiores de Veneza. 

Ter visto a capela de Giotto, em Pádua. 

Ter reconhecido, a uma curva da estrada entre Ravena e Roma, o décor natural de um filme americano, aliás medíocre, Romeu e Julieta (orgulho de minha memória visual). 

Ter visto toda Berlim (visão inesquecível). 

Ter conhecido a Itália: revelação total e sentimento do que ela representa, como herdeira direta do Ocidente e Oriente, da Etrúria e de Bizâncio, da Grécia e do Império Romano, do Renascimento e do Ressurgimento, dos partigianni e de seu maravilhoso povo agridoce, belo, saudável, interessado, independente, apaixonado, generoso e sensível, o melhor caminho de salvação ocidental. 

Ter visto a Via Ápia ao luar, caminho pelo qual o Cristianismo penetrou no Ocidente: mistério de suas estátuas e ruínas. 

Ter conhecido a obra do escultor moderno italiano Marino Mazzacurati. 

Ter voltado, depois de seis meses de comida estrangeira, a comer brasileiro durante cinco dias, em casa de meu amigo Geraldo Silos, em Roma. 

Ter feito um novo amigo, o italiano Armando Ferrari. 

Ter constatado que o italiano sem gravata é muito mais chique que o italiano com ela. 

Ter conhecido o produto Stago, um líquido verde com gosto de hortelã, que é porrete para desintoxicar o fígado. 

Ter visto o meu velho cupincha, o baterista negro americano Zutty Singleton, e ter lhe dado a comer em Paris uma feijoada completa. 

Ter constatado que as italianas não raspam debaixo do braço. 

Ter rodado Barcelona em duas horas com o poeta Raul Bopp. 

Ter tomado aguardente portuguesa com o poeta Adolfo Casais Monteiro e girado com ele pela Alfama, em Lisboa. 

Ter ficado absolutamente convencido de que o Brasil, com todas as suas qualidades negativas, é um país profundamente humano e doce de se viver.

Segue-se o arrolamento das decepções do poeta Vinicius:

Paris envelheceu (com grande classe, é claro...). 

A arte abstrata, vista em grande massa como eu vi, cumpre uma triste função — a de anunciar um fim de caminho. 

A pintura de Gauguin: desconfiança antiga, constatação definitiva. 

O conhecimento pessoal do genial jazzman americano Sidney Bechet.

Saint-Germain-des-Prés, o quartier existencialista e letrista, que ainda eu não tinha visto como tal: o lado ridículo do desespero. 

A nova escultura francesa: ou com raízes arqueológicas, desligada do tempo, ou abstrata, impotente. 

O último cinema italiano: perda considerável de vigor. 

A volta das saias compridas à moda feminina. 

A Alemanha em geral: não temos nada a ver um com o outro, ressalvada a beleza comovente de certas regiões, como a do Reno, e naturalmente sua arte. 

O sentimento da presença recôndita do nazismo. 

O Davi, de Michelangelo, em Florença — frio —, e sua Capela Sistina, em Roma: com muito ipsilone demais. 

A obra de Rafael, em geral: o primeiro grande acadêmico, pintor perfeito, sem dúvida, mas... — sobretudo seus afrescos do Vaticano. 

A casa de Goethe em Frankfurt (muito “saca”). 

O túmulo de Dante em Ravena, a pedir dinamite. 

Os festivais de cinema, em geral: muito rapapé, pouca arte, donde a triste constatação de que o cinema está morrendo e precisa de sangue novo com a maior urgência. 

A Conferência Internacional dos Artistas em Veneza: presença do sentimento do impasse, de impotência, de reserva. 

De um ponto de vista orgânico, a Europa em geral, com exceção da Itália, com um sentimento de fim de era, de constrangimento e mal-entendido.

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