Publicada nos livros Murais de Vinicius e outros perfis, de 2000, e O mais estranho dos países. de 2013.
Fez de tudo, fez tudo; nasceu empelicado (acontece), estudou oratória, roubou um soneto do próprio pai, psicografou mensagens de além-túmulo, foi aluno de um Gracie, pescou baiacus, foi crítico de cinema, censor de cinema, jogou de meia-direita, jogou sinuca, jogou bilboquê (era plim e plão), deu bodocadas (era plic e ploc), foi um menino valente e caprino, achava bonita a palavra escrita, cantou foxes e modinhas, estudou na Inglaterra, foi amigão de Carmen Miranda, viajou com Waldo Frank, estudou com Orson Welles, perdeu automóvel, perdeu avião, caiu de avião, teve desastre de carro, foi cônsul e secretário diplomático, representou no palco, foi defensor do cinema mudo, teve poemas seus inseridos no script de um casamento da nova onda litúrgica, tocou violão, conseguiu empinar papagaios bancários até na Suíça, dançou demais, leu Léon Bloy e outros católicos ferozes, escreveu tese sobre d. João VI, pertenceu a um centro de estudos jurídicos, não encontrou o sorriso exato para a prática da advocacia, funcionou na BBC, foi apanhado por uma grande guerra, festivalista cinematográfico e musical imoderado, parceiro de Ari Barroso, Tom Jobim, Carlos Lyra, Baden Powell, Bach e outros, amigo à primeira vista, amigo a perder de vista, amigo de todas as raças e timbres, bom de bola de gude, jogou diabolô, teve maus momentos (mas reagiu), foi comparado por Afonso Arinos de Melo Franco a um navio grego, tal qual um burro sem rabo dos mares, sem plano algum de viagem, navegando segundo as encomendas, fez versos compridos como iole-a-8, e versos curtinhos como bicos de passarinhos, disse que a mulher amada era como o pensamento do filósofo sofrendo, disse que só bateu numa mulher (mas com singular delicadeza), verificou que há mulheres altas e mulheres baixas, mulheres bonitas e mulheres feias, mulheres gordas e mulheres magras, mulheres caseiras e mulheres rueiras, mulheres fecundas e mulheres estéreis, mulheres primíparas e mulheres multíparas, mulheres extrovertidas e mulheres inconsúteis, mulheres homófagas e mulheres inapetentes, mulheres suaves e mulheres wagnerianas, mulheres simples e mulheres fatais, mulheres básicas e mulheres ácidas, mulheres ocas (inorgânicas frias estátuas de talco com hábito de champanhe e pernas de salto alto), pediu piedade ao Senhor para as pequenas famílias suburbanas, para os adolescentes que se embebedam de domingos, para os vendedores de passarinhos, para os barbeiros em geral, e para os cabeleireiros que se efeminam por profissão, para as mulheres chamadas desquitadas, para as mulheres casadas (que se sacrificam e se simplificam a troco de nada), enfim Vinicius foi VINICIUS (V de Vanda, I de Ismênia, N de Nancy, I de Ingrid, U de Úrsula, S de Samira)... Marcus Vinicius Cruz de Melo Moraes foi tudo, fez de tudo, menos três coisas, inclusive poemas inocentíssimos para criancinhas:
Onde vais, elefantinho?
Correndo pelo caminho
Assim tão desconsolado?
Andas perdido, bichinho?
Espetaste o pé no espinho?
Que sentes, pobre coitado?
— Estou com um medo danado.
Encontrei um passarinho.
Stanislaw Ponte Preta (o nosso querido Sérgio Porto) descobriu que Vinicius eram muitos; se fosse apenas um, seria Vinicio de Moral.
Quando o viu pela primeira vez, Jayme Ovalle (o oxigênio poético de duas gerações brasileiras) foi falando para o poeta Augusto Frederico Schmidt: “Ele é muito bonzinho... é tão bonzinho que um dia... que um dia ele é capaz de sair correndo assim, compreende, sair correndo assim, e aí...”.
Ovalle jamais concluiu a frase... e aí é a mais definitiva frase que alguém jamais falou sobre Vinicius de Moraes.
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Eu o conheci em Belo Horizonte, 1943, na Sociedade Brasileira de Cultura Inglesa, onde ele, com uma descontração de riacho de grota, deslizou uma palestra sobre a poesia das ilhas britânicas. E depois fomos em bando para a noite do Parque Municipal, onde o poeta cantou diversas vezes “Stormy weather” debaixo de um luar torrencial. E aí nossa amizade não se acabou mais.... Mas amizade é uma palavra oficial como busto de praça pública; e amor é palavra diversificada demais como fogos de artifício. Então direi: e aí o nosso enleio não acabou mais.
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No meu livro de recordes, a despedida de Neruda e Vinicius na esquina da rua San Martin com Carlos Góis, em 1945, foi a mais prolongada de todos os tempos. Tínhamos passado a noite na casa de Tati e Vinicius e houve tudo: música, canto, poesia, um choque elétrico, de verdade, quando Vinicius abraçou um recém-chegado; e só o ardor da manhã nos convenceu de que a noite acabara. Na tal esquina os dois poetas trocaram inumeráveis abraços, e um foi pra lá, e o outro foi pra cá. Cinco passadas em direções opostas, Neruda virou-se com um grito: “Vinicius!”. Este precipitou-se nos braços de Neruda. Inumeráveis abraços. Cinco passadas, Vinicius gritou: “Neruda!”. Este precipitou-se nos braços de Vinicius. E aí a fita cômica durou um pouco mais de trinta minutos, ganhando maior velocidade com as risadas dos espectadores. De repente, não mais do que de repente, os dois marcaram um encontro para logo mais, creio que no Lucas, onde Neruda ficava a espiar o menu, e acabava pedindo camarões, explicando-nos que fazia terrível esforço para comer outra coisa, mas não conseguia: adorava camarones.
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Uma vez Vinicius chegou de manhãzinha e de repente na casa de seus amigos Maria Amélia-Sérgio Buarque de Holanda, em São Paulo. Uma empregada o introduziu na sala apenumbrada e foi chamar os patrões. O poeta já se ia acomodando numa poltrona e atingindo o point of no return, quando sentiu algo vivo debaixo de si. Pensou naturalmente que fosse um gato, mas era uma criancinha de colo. Se Vinicius não fosse ágil, talvez tivesse sufocado em semente o seu futuro parceiro Chico Buarque de Holanda.
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Ainda em Beagá, eu sabia de cor, entre outros, um poema de Vinicius intitulado “Ausência”. Começava assim:
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces.
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida.
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados...
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Pouco tempo depois de ter conhecido o poeta, aproveitei uma pausa, despejando-lhe em cima os seus versos, nos quais a separação se transforma espiritualmente em traço de união. Quando terminei, o poeta contou distraído: - “Foi um amor de namoradinha que eu tive em Niterói. Mas aquela travessia de barca me enchia o saco”.
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Há outra namoradinha que o poeta perdeu de vista durante dez, 15 anos. É ela que de repente se materializa na frente dele no tumulto da avenida Rio Branco. Identificada, há entre os dois uma troca um tanto formal de carinhos. O poeta pergunta: “Você continua sempre no Jardim Botânico?”. A mulher informa, interessada: “Não, estou há muito tempo no S. João Batista”.
Vinicius me disse que não se aguentou: “E qual é o número de sua sepultura?”.
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Quando me mudei para o Rio, em 1945, Paulo Bittencourt exigiu que eu criasse um texto jornalístico para ser (ou não) admitido ao Correio da Manhã. Aflito, procurei os amigos cariocas em busca de uma ideia salvadora. Eles ponderavam muito e sugeriram coisas vagas ou impossíveis. Vinicius, não, me falou logo que tinha uma “ideia genial para uma reportagem sensacional”. E o tema genial era o seguinte: cocô no mar do Leblon. Usou os argumentos todos, da saúde pública ao turismo. Eu compreendia a gravidade do cocô, mas respondi que o tema me fecharia a porta do jornal. Escrevi uma reportagem sobre o comércio de flores e obtive o emprego. E o cocô no mar do Leblon ainda continua lá, em 1988.
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Levei Vinicius pra casa, na Gávea. Quando se abriu o olho da madrugada o poeta se agarrou às grades da janela da sala e começou a proclamar indefinidamente os versos de Carlos Drummond de Andrade: “Aurora, entretanto, eu te diviso,/ ainda tímida/ inexperiente das luzes que vais acender/ e dos bens que repartirás com todos os homens...”.
Só parou ao abrir o primeiro boteco da praça do Jóquei. E fomos lá beber uma estupidamente gelada.
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Vinicius estava noivo outra vez e alugara um apartamentinho na rua Barata Ribeiro. Móveis: uma cama de casal e uma mesa com duas cadeiras.
Pedi água. Ele me levou à minúscula varandinha, onde se encontrava uma moringa; trouxe um copo; conseguiu achar uma pastilha de hortelã. E aí me disse, venturoso: “É uma descoberta minha, genial! Ponha a pastilha na boca e vai bebendo devagar! Genial! Igualzinho a água gelada!”.
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Irineu Garcia, produtor de discos de poesia, dava barbadas e, pior, as do dia anterior: “Sabe quem estava num pifa homérico ontem? O Vinicinho!”.
Quando não era o Vinicinho, era o Tomzinho, o Lucinho, o Paulinho...
Até que certo dia o próprio Vinicinho lhe deu uma decisão: “Olhe aqui, Irineu: quando você encontrar o Alceu Amoroso Lima, o dr. Sobral Pinto ou d. Helder Câmara de porre, telefone lá pra casa (pode ser até de madrugada) e me conte”.
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No Juca's Bar, a mesa-quadrada opinava sobre afrodisíacos. Vinicius permaneceu calado até o encerramento dos debates, quando afinal pronunciou: “Eu acho o seguinte: quando uma mulherzinha linda deixa de ser afrodisíaco, o jeito é pendurar as chuteiras”.
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Noite alta, céu risonho, Vinicius, Lúcio Rangel, o compositor Ismael Silva, Murilo Miranda, João Cabral e eu. Íamos andando sem pressa pela avenida Beira-Mar, cantando coisas do Ismael (menos João Cabral, que não era seresteiro). Foi quando nos detiveram dois soldados a cavalo, que invocaram a lei do silêncio e queriam levar-nos para a delegacia da rua Santa Luzia. Esgotamos todos os argumentos líricos, populares, cariocas. Por fim, sem esperança, Vinicius apelou para a carteira de diplomata. Fomos liberados.
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Vinicius veio encontrar-me no bar da piscina do Copa. Depois de longa temporada fora do Brasil, estava chegando duma visita a Manuel Bandeira e ficara triste com a tristeza do velho poeta. “Imagine que ele anda falando coisas com palavras que não são dele. Disse pra mim: 'Meu coração hoje parece um cemitério'. Isto não é do Manuel, coitadinho! Me deu uma peninha!”.
Repliquei que, para tal tipo de mágoa, não há bom gosto nem estilo; pior seria se o Bandeira dissesse que o coração dele era um campo-santo ou uma necrópole. Vinicius abriu os olhos, aliviado: “Você tem toda a razão”.
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No velho Vermelhinho as mesas eram ocupadas por escritores, jornalistas, pintores, gente do palco e estudantes de belas-artes. Suas figuras mais constantes eram Santa Rosa, com o cigarro pendurado na boca, Rubem Braga, Lúcio Rangel, Flávio de Aquino... O poeta João Cabral costumava chegar, conversar um pouco e, já alegando dor de cabeça, dar um pulo à farmácia Normal. Os artistas pretos — Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Solano Trindade, Abdias Nascimento — sentiam-se em casa naquelas cadeiras de vime, assim como os estrangeiros trazidos pela guerra. Carlos Drummond de Andrade, deixando o Ministério da Educação, só passava de fininho pela rua Araújo Porto Alegre. Mas o papel principal do Vermelhinho cabia a Vinicius de Moraes.
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Em dezembro de 1949 foi inaugurado o Juca’s Bar, na rua Senador Dantas: era o alívio do ar refrigerado que nos chegava. Lá se instalaram rapidamente os assessores do presidente Juscelino, os irmãos Condé, os irmãos Chaves, que atraíam os nordestinos itinerantes. Olívio Montenegro e Gilberto Freyre costumavam dar as caras.
Era uma mistura sensacional e estimulante. Ali todos os setores tinham as suas embaixadas: arquitetura (Carlos Leão), futebol (Zé Lins), pintura (Di Cavalcanti), beleza (Tônia Carrero), samba (Araci de Almeida), Texas (Jane Braga), humorismo (Sérgio Porto), jazz (Lúcio Rangel). Rubem Braga representava a prosa e Vinicius de Moraes, o verso.
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Mal havia chegado em casa, na Gávea, quando foi chamado ao telefone. Foi no tempo da badalação maior da bossa nova. Uma voz chorosa dizia que era mãe do Manduca, que falecera naquele mesmo dia, fora colega do Vinicius no colégio, aliás, o amigo de quem mais o filho gostava, sabia todas as músicas dele, vivia falando com muito orgulho sobre os tempos da camaradagem de ambos... E tal e coisa, “o senhor era o maior amigo que ele teve”...
Vinicius lembrava-se vagamente do colega, mas sentiu na hora a pungência materna, comunicando à dolorosa mãe que iria imediatamente para o velório. Em que capela? O corpo está sendo velado em casa. Onde a senhora mora? Em Madureira, na rua tal. Palavra de poeta não volta atrás. Mandou chamar um táxi e se mandou para o subúrbio. Entrou num chalé, a sala repleta de vizinhos, outros entrando. Percebeu Vinicius que a pobre mãe avisara que o poeta, o maior amigo do Manduca, estava para chegar. Conduzido até o caixão, no centro da sala, a mãe retirou o lenço que cobria o rosto de Manduca, e Vinicius, com toda a sua carinhosa intuição poética, sentiu que todos esperavam uma frase dele. Atolado mentalmente na situação, colocou a mão sobre o ombro do morto, pronunciando sem querer a seguinte sentença: “Aguenta a mão aí, bichão”.
No fim da frase já sentia a monstruosidade do seu pronunciamento, esperando em vão que o chão se abrisse e ele também desaparecesse.
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Uma tarde eu estava na cobertura de Rubem Braga quando chegaram três moças legais: queriam conhecer o sabiá da crônica. O papo se descontraiu quando começamos a tomar um uisquinho entre as bonitas folhagens do fazendeiro do ar. Aí chegaram, também de surpresa, Vinicius, Tom e Chico Buarque, que aderiram à bebida e às moças, entrando com a contribuição musical. Rubem, depois da terceira música, me chamou para conversar no escritório: “Vamos ficar aqui; a gente não vai ganhar nunca dessa conversa de bem bim bom...”.
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Vinicius andava fora quando o admirável Ungaretti esteve no Rio em 1966. O poeta me convocou para alguns encontros e ficamos amigos, mas eu me sentia como um jogador reserva no banco, pois a todo momento ele enfiava na conversa um refrão lírico: “Queria tanto encontrar o amigo Vinicius!”.