Fonte: O jornal de Antônio Maria, Saga, 1968, pp. 23-26.  

  Ora, se um cego guiar outro cego, cairão ambos no barranco. 
(J. Cristo)

E com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria:

Lembram-se dele? Arão gerou a Aminadabe, Aminadabe a Naasson, Naasson a Salmon, Salmon a Dona Diva, que concebeu Antônio, por obra e graça de Inocêncio, num entardecer chuvoso do Engenho Pontable.

As ovelhas, em silêncio, desciam a ladeira dos Encantos, tangidas por um pálido pastor agraciado pelo impaludismo e a esquistossomose.

Em março nascia Antônio e, após o momento dramático em que lhe foi cortado o cordão umbilical, precisou adquirir oxigênio por seu próprio esforço (a respiração) e seu alimento, pelo ato da lactação. Coitado!

Como sabeis, a lactação não é simplesmente o prazeroso processo de sugar (chupar) leite e, sim, um período transitório entre a total dependência e a separação, também total, entre o filho e a mãe. E que fazia Antônio? Agarrava-se, amorosamente, a sua confortável "mater", vivendo, em desespero, os últimos dias do contato geral com o ser materno.

Isto aconteceu a todas as crianças, exceto a Vinicius de Moraes, que foi sempre amamentado e amado pelas jovens mães dos outros.


Com vocês, Antônio, após dois meses sem escrever uma só palavra. Volta da infância, onde tudo (pessoas, coisas e paisagens) estava irreconhecível. A mãe tinha olhos azuis e cabelos estrangeiros. O pai dançava Surf e as irmãs liam Carlos Heitor Cony, todas as manhãs, em jejum. Era preciso voltar. Inventar uma desculpa, e voltar.

José Aparecido está me esperando à porta do Rond Point – Quem é José Aparecido?... perguntaram em coro. – Ah, não sabem? O único descendente direto da Senhora Aparecida, um dos esteios da revolução. Trata-se do "ex" mais "futuro" deste país. Tem 28 anos e é de Conceição, Minas Gerais S/A.


Despediu-se Antônio: tchau, tchau, tchau... e se pôs em viagem, a caminho de Fernando Mendes. Da infância trouxe frutas. Todas deliciosas. Abacaxis, para os banqueiros de suas relações. Sapotis, para as moças, pouco moças, suas conhecidas. Mangas, para os poetas. Bananas, para psicanalíticos militantes nesta praça.

Reina, Antônio, em Fernando Mendes. Um delicioso apartamento, de quarto, sala e piscina. Ocupa o dito Antônio, pela primeira vez, uma cama inteira, e isto muito lhe dificulta o levantar.

– Onde estão os meus braços? – ... pergunta Antônio de manhã. – E a perna esquerda? E a cabeça?

Para quem ocupa uma cama inteira, pela primeira vez, não há nada mais difícil que encontrar a cabeça, de manhã.


A vida, em Fernando Mendes, é uma delícia. Uma generosa falta d'água, só interrompida às quintas e domingos, das sete às nove, nos livra desse burguesíssimo hábito tropical, chamado banho. A ausência total de livros nos descompromete de maneira definitiva com a cultura.

O homem sempre perdeu imenso tempo lendo e tomando banho. Quantas viagens, quantos apartamentos, quantos passeios no bosque, quantos ternos de casimira teria Antônio feito não fossem as obrigações de chuveiro e Machado de Assis!

Mas, come-se maravilhosamente, em Fernando Mendes. Bobós de camarão, fritadas de bacalhau, sarapatéis, arroz de carreteiro, feijoadas sensualíssimas!

São Mateus é contra o comer, e tanto, que em seu Evangelho pergunta:

“Não compreendeis que tudo o que entra pela boca desce para o ventre e, depois, é lançado em lugar escuso? Mas o que sai da boca, vem do coração etc. etc.”

Um dia, São Mateus irá comer comigo um sarapatel apimentado, feito, exatamente, com o escuso ventre dos porcos. As vísceras. No dia seguinte terá Mateus que acrescentar ao seu Evangelho uma emenda irrecorrível: "Pensando melhor"...

Cá estou eu a escrever tolices. Com imensa facilidade — convenhamos. Vivemos dias em que é preciso escrever tolices. Há uma dor preponderante em cada coração. A humanidade já não está escolhendo entre o matar-se e o continuar vivendo. Vacila, apenas, em se a melhor solução será abrir o gás ou tomar uma dose definitiva do sonífero mais em moda.

Então escrevamos. Escrevamos tudo sobre o Nada. E nada, absolutamente nada, sobre o "tudo isto", que são as causas da nossa atitude cabisbaixa, face a Deus e às autoridades militares.

Após dois meses sem escrever uma só palavra, cá estão estas que, embora não pareça, dizem tudo. Bom dia, amigos. Bom dia, inimigos. Amai-vos e odiai-me. Trabalhai. Trabalhemos. Mas, não nos esqueçamos de que o grande esforço (físico ou mental), que vai despender um trabalho qualquer, tem que ser estabelecido mediante um estudo de nossa capacidade de rendimento e de resistência à fadiga. Lembrai-vos, outrossim (sempre tive imenso desejo de escrever “outros-sim"), de que todos os prazeres da solidão, embora lícitos, são inconfessáveis.

Com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria, brasileiro, cansado, 43 anos, cardisplicente (isto é: homem que desdenha do próprio coração). Profissão: Esperança.

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