Periódico
Jornal do Brasil
Publicada, posteriormente, no livro O mais estranho dos países. Sâo Paulo, Companhia das Letras, 2013, pp. 217-218, com o título Casa do Leblon.

CASA DO LEBLON – Casado com Tati, Vinicius tinha casa no Leblon, na atual rua San Martín, entre Carlos Góis e Cupertino Durão. Com dois pavimentos, era uma casa arranjada com muito jeito pelas mãos hábeis de Tati, que só não era capaz de compor uma decoração diplomática para o nosso cônsul. O poeta foi o único membro ativo dos corpos diplomáticos do globo que não procurou adquirir ou conservar aqueles excelentes artigos manufaturados pelos quais distinguimos (e invejamos) os homens da carrière. Nunca nos apareceu encadernado em lãs inglesas espetaculares; com gravatas e sapatos italianos de fazer babar o elefante aborígene; com valises de couro argentino; com máquinas de escrever, vitrolas, câmeras e os demais gadgets da indústria americana; creio mesmo que até as canetas dele sempre foram dessas comuns que a gente compra no balcão do charuteiro.

Um dramalhão era colocar o cônsul no caminho que conduz ao Itamarati: não existiu ninguém que ficasse acordado com tanta facilidade durante a noite e que sentisse uma repulsa tão cataléptica pelo dia. Sei disso por ter sido hóspede do casal durante algum tempo. E não falo em tom de superioridade, pois, quase sempre, também eu só despertava quando a mão de obra para enfiar o poeta nos trâmites burocráticos ultrapassava a barreira do som.

Na sala de Tati e Vinicius (com um belo retrato do poeta feito por Portinari) estavam habitualmente Rubem Braga, Zora, Rute, Carlos Leão (o nosso arquiteto e desenhista Caloca), Fernando Sabino, Helena e Otto Lara Resende, Lauro Escorel e Sara, Moacir Werneck de Castro, Carybé, Otávio Dias Leite (o Deleite). Aí Pablo Neruda leu para nós, em agosto de 1945, um longo poema então inédito sobre as paragens incaicas (“Alturas de Machu Picchu”, depois incluído em Canto general).

Quando comecei timidamente a contar para Neruda que conhecera em Belo Horizonte dois chilenos que se diziam grandes amigos dele na sua juventude, o poeta me interrompeu, botando a mão no meu ombro: “Todos es verdad!” Não precisei dizer mais nada: as histórias fantásticas de brigas coletivas e as farras descabeladas eram verdadeiras. É um alívio saber que o fantástico existe e que os forasteiros que passam pela nossa província nem sempre estão mentindo.

A casa de Vinicius foi demolida. Entrou para o Libro do tombo da doce-amarga memória que é uma constante mental de todos os homens de letras e artes, sejam eles os Dantes de uma época ou doces e ridículos fabricantes de trovinhas. O edifício que construíram no terreno custou a vingar; durante uns 20 anos o esqueleto de cimento envelheceu na chuva, na maresia. Sei disso porque ainda estou no espaço vizinho daquele tempo removido e corroído.

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