30 jun 2021
Humberto Werneck
Paulo Barreto, o João do Rio, a partir de agora incorporado ao time do Portal da Crônica Brasileira, é merecedor, também aqui, não de um, mas de dois tapetes vermelhos, um para cada enorme contribuição que nos deixou, na dupla condição de cronista e de repórter. Numa atividade como na outra, assinando-se bem pouco com seu nome de pia, e sim com um punhado de pseudônimos, dos quais o mais conhecido é João do Rio, o escritor carioca, falecido aos 41 anos há pouco mais de um século – 23 de junho de 1921 –, foi não somente um craque como um notável inovador.
Não há exagero em considerá-lo, na história da imprensa brasileira, o primeiro repórter genuíno, diferenciado de seus pares num tempo em que a maioria dos jornalistas,...15 jun 2021
Humberto Werneck
Os tempos, claro, são outros, nem sempre melhores, a imprensa, também – e o fato é que, nostalgia à parte, nunca mais tivemos, nos domínios da crônica, uma fase de ouro como aquela que cintilou da metade dos anos 40 a meados dos 60, com brilho mais intenso na década de 50.
O leitor dispunha então de uma boa dúzia e meia de cronistas, vários deles entre os melhores que o gênero já nos proporcionou. Só na Manchete, revista semanal criada em 1952, havia quatro, e veja quem: Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, além de Henrique Pongetti, que, sem ombrear com eles, nem por isso fazia feio. Também toda semana, Rachel de Queiroz acostumou muita gente a começar pela última página a leitura de O Cruzeiro... 1 jun 2021
Humberto Werneck
É bem possível que Paulo Mendes Campos sofresse de – vá desculpando a brincadeira com as palavras – insônia crônica, pois foram muitas as ocasiões em que tomou o tema como assunto em seus escritos. Numa delas, o sono decepado pôs para rodar um filme, não na televisão, como fazem tantos em madrugadas de vigília incontornável, e sim na inesgotável cinemateca da memória. Pois sua insônia, contou ele, vinha a ser “um vasto mural no tempo, composto de quadros díspares e desordenados”, cuja unidade era “um fiozinho mínimo e invisível dentro da Noite”: o próprio Paulo. Um filme que, daquela vez ao menos, principiava com uma fotografia em que, menino, ele posava ao lado da mãe, junto ao muro de um cemitério, Freud explicaria?...17 mai 2021
Humberto Werneck
Do nosso time de cronistas, houve três que não se contentaram em apenas visitar Paris. Trataram de passar ali um tempo mais largo e mais pausado, sem o implacável cronômetro de um turista. Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e José Carlos Oliveira, por ordem de chegada ao mundo (e a Paris), viveram temporadas esplêndidas às margens do Sena, e de lá abasteceram jornais do Rio de Janeiro. De volta ao Brasil, a experiência de cada um seguiu rendendo prosa, carregada de memórias.
Para Rubem Braga, foram especialmente vivas as lembranças de um prédio onde morou, no número 44 da rue Hamelin, não longe do Arco do Triunfo. Instalado com mulher e filho em acomodações geladas, no 4º andar, só mais tarde veio a saber que 25 anos antes dele...30 abr 2021
Humberto Werneck
Homem sofrido, Lima Barreto teria ainda mais motivos para se lamentar, pois nasceu numa sexta-feira, 13, só lhe faltando ser agosto. Mas não achava que a circunstância lhe trouxera azar. Se trouxe, a má sorte terá sido contrabalançada pela fortuna de haver nascido num mês, diz ele em “Maio”, no qual “as ambições desabrocham de novo” e se produzem “revoadas de sonhos”. Poderia acrescentar que se beneficiou também do fato de ter vindo ao mundo num ano, 1881, assinalado, como raríssimos outros, por algarismos que formam capicua, aquele número que se pode ler também de trás para diante. Descendente de africanos, o melhor presente do menino Afonso Henriques, no dia dos seus sete anos, um domingo, foi um convite do pai...19 abr 2021
Humberto Werneck
Leitor insaciável de pesquisas de opinião, não fosse ele um jornalista atento, Otto Lara Resende se deparou um dia com uma enquete segundo a qual apenas 40% dos franceses acreditavam no Inferno, e, menos numerosos ainda – 38% –, no Diabo. Bem diferente do panorama aqui por nossas bandas, avaliou o escritor mineiro, seguro de estar vivendo num país “Católico, mas brasileiro”. Sua suposição de certa forma se confirmaria um mês depois, ao ler noutra pesquisa, essa nacional, que 93% de seus compatriotas tinham fé em Deus. E mais: 91% deles acreditavam nos anjos – em especial o da guarda, que alguns afirmavam já terem visto, estando assim capacitados a descrevê-lo como uma espécie de atleta, “alto, louro, forte”, apto... 5 abr 2021
Humberto Werneck
Assim como ninguém é ruim numa coisa só, um mal quase nunca vem sozinho. A constatação vale especialmente para os dias que correm, mas está longe de ser novidade. Basta ver um registro que fez Lima Barreto no ano de 1920, quando campeava ainda por aqui “um impiedosa epidemia”, fruto de vírus que ele não nomeia, inequivocamente o da gripe espanhola. Além daquela “gripezinha” (em nome da qual, aliás, tentou-se empurrar nos pulmões do povo uma inócua Grippina, que em comum com a cloroquina teria muito mais que a rima), grassava outro flagelo, o da pirataria intelectual: um “médico modesto”, conta o cronista em “O pai da ideia”, publicou artigo receitando encher o Rio de hospitais – mas ninguém passou recibo da sábia...17 mar 2021
Humberto Werneck
Nascido há exatos 100 anos, completados neste 17 de março, Antônio Maria ficou sendo, entre os cronistas do nosso Portal, o único que se foi sem publicar livro. Não que o “Menino Grande” (um de seus apelidos, título de canção sua) fosse indiferente à ideia, manifestada aqui e ali, sem muito elã. É bem possível que tivesse chegado às livrarias, não fosse o infarto que o levou aos 43 anos. Livros dele, só bem adiante, organizados e editados por iniciativa de amigos, e, mais adiante ainda, do cronista e jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, que viria a ser também o seu biógrafo, em Um homem chamado Maria.
Embora várias coletâneas tenham sido publicadas a partir de 1968, quatro anos após a sua morte, a maior...15 fev 2021
Humberto Werneck
Difícil imaginar o que Rachel de Queiroz, falecida em 2003, escreveria sobre o Carnaval da Covid, sem blocos na rua e com sambódromos abertos apenas à vacinação. Difícil imaginar, também, que em algum momento de sua meninez, juventude ou idade madura a escritora cearense tenha sido foliona. Talvez sim, pois no ano de 1949 ela pingou um lamento, ou quase, na sua já então famosa última página da revista O Cruzeiro. A grande festa popular “morreu, se acabou”, registrou Rachel em “Carnaval”, reduzida que fora “a dois grupos bem distintos e algumas vezes adversos: a turma dos exibicionistas e a turma dos melancólicos espectadores”.
Sua colega Clarice Lispector fazia parte da segunda turma – pelo menos na decisiva...29 jan 2021
Humberto Werneck
Contra uma fartura de evidências, volta e meia aparece alguém dizendo que a crônica morreu. E nem é de hoje essa conversa. “A defunta, como vai?”, ironizou Otto Lara Resende há quase trinta anos – e foi mais fundo ainda, ressuscitando uma enquete realizada duas décadas antes sobre a suposta falecida. Ele próprio cronista de mão cheia (cabe aqui o empoeirado clichê), o escritor, mineiramente, houve por bem, houve por mal não meter a sua na cumbuca. Teria sido ótimo conhecer a sua avaliação, porém Otto limitou-se a sintetizar o que disseram, em 1972, alguns dos melhores cronistas então na ativa – Fernando Sabino, Rachel de Queiroz, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade. Ah,...15 jan 2021
Humberto Werneck
Certamente não é por falta de assunto que um cronista toma às vezes como tema algum colega de ofício. Muitos o fizeram, não raro ainda em vida do personagem. Otto Lara Resende, por exemplo, escrevendo sobre Fernando Sabino, como adiante se verá. Também não é raro que o objeto da crônica seja alguém já falecido. Houve um momento, em 1950, em que Rachel de Queiroz, na sua famosa última página da revista O Cruzeiro, se ocupou de dois cronistas mortos, nosso Lima Barreto e o Machado de Assis, por ela reunidos em “Dois negros”. Não é difícil que tenha, com essa crônica, ateado discussões ao compará-los pelo ângulo da raça. Na opinião de Rachel, brandindo há 70 anos argumentos hoje mais que nunca em pauta, Machado...15 dez 2020
Humberto Werneck
Com exceção de Vinicius de Moraes, para ele “outro departamento”, Otto Lara Resende achava que Manuel Bandeira era “o mais musical” dos poetas brasileiros. Para prová-lo, sacava a lista dos compositores de quem o mestre se tornou parceiro, fosse com poesia catada em sua obra, fosse escrevendo versos para partituras deles. Artistas graúdos como Villa-Lobos, Jayme Ovalle, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Ari Barroso. Otto poderia ter acrescentado Tom Jobim, Gilberto Gil, Dorival Caymmi e Milton Nascimento, que musicaram Bandeira após a sua morte, e nem assim a lista estaria completa. Seu lado musical lhe parecia tão consistente que o cronista, em “Uma letra e suas voltas”, até se penitencia por haver acreditado ser dele...30 nov 2020
Humberto Werneck
Se você nunca leu José Carlos Oliveira, prepare-se para um doce problema: no mar de coisas boas que o cronista (além de romancista) nos deixou, e que por mais de vinte anos encantaram os leitores no Jornal do Brasil, por onde começar? Na dúvida, o melhor talvez seja aventurar-se, mordendo saborosas iscas verbais nas amostras a partir de agora disponíveis neste nosso Portal da Crônica Brasileira – amostras essas cuja quantidade, para o bem de todos, não cessará de aumentar, peneiradas nas mais de 3 mil crônicas que Carlinhos Oliveira, como era mais conhecido, escreveu em seus breves 51 anos de vida.
Qualquer que seja o ponto de largada, não haverá de escapar a você o cuidado literário que o cronista punha em seus escritos,...13 nov 2020
Humberto Werneck
Imbatível na crônica, Rubem Braga era ruim de voto. Não que fizesse más escolhas políticas. O problema era uma certa incapacidade de seus candidatos, pelo menos boa parte deles, de saírem vitoriosos nas urnas, mesmo quando contavam com a sua força. Nem por isso esmorecia. “Neste momento estou pensando em vários nomes de amigos que gostaria de sufragar”, escreveu em “Voto”, às vésperas das eleições legislativas de 1954, lamentando não poder cravar mais de um nome para cada cargo em disputa: “a amizade é longa e o voto é curto".
Muitos (e)leitores devem ter amado a crônica, na qual o Braga não hesitou em escancarar suas escolhas – mas não ao ponto, parece, de adotarem em massa as preferências daquele inesperado...30 out 2020
Humberto Werneck
Poeta e cronista inspirado – para desempoeirar um lugar-comum de comentaristas literários de outrora –, Carlos Drummond de Andrade foi também assunto, farto e diversificado, para muitos de seus colegas de ofício. De todos eles, Otto Lara Resende talvez tenha sido o que mais próximo esteve do poeta, que neste 31 de outubro, comemoremos, estaria completando 118 anos. Próximo o bastante para não titubear quando, chegada a hora de colorir um retrato seu, pintou também inesperada dúvida: qual era mesmo, gente, a cor dos olhos de Carlos Drummond de Andrade?
O poeta Abgar Renault, colado à sua vida desde a mocidade belo-horizontina, não hesitou em afirmar: eram verdes. Consultados, os amigos Yeda Braga Miranda e Moacir Werneck de Castro...16 out 2020
Humberto Werneck
Daqui para a frente, nesta era do e-mail e do WhatsApp, neste tempo de comunicações instantâneas também por escrito, não se sabe bem como será – mas entre os escribas de outras épocas, uns mais, outros menos, sempre teve raízes poderosas o hábito de escrever cartas, muitas das quais vieram a constituir parte relevante da obra de seus autores. Mário de Andrade é apenas o exemplo mais radical de missivista contumaz. Há muitos outros.
No nosso Portal, inclusive, abrigo de um escrevinhador de cartas cuja compulsão epistolar só se pode comparar à de Mário: Otto Lara Resende, de cuja fartíssima correspondência ativa, até agora, apenas uma primeira e suculenta amostra chegou às livrarias, nas mais de 400 páginas de O Rio é tão longe...30 set 2020
Humberto Werneck
Vários dos cronistas de nosso Portal fizeram da boa mesa uma de suas mais apetitosas musas, e não deixa de ser curioso o fato de que, entre eles, quem mais tangeu essa lira específica foi justamente um magro, o mineiro Paulo Mendes Campos. Nada indica que ele fosse parco em carnes porque jejuasse – ao contrário, basta ver o ardor de gourmet, eventualmente de gourmand, glutão em francês, com que Paulo proseou sobre comida (e, mais ainda, bebida). Se pilotava um fogão, não se sabe, mas dúvida não há de que no garfo & faca, além da escrita, ele era um craque. Quem mais, no afã de explicar a uma “gringa” – provavelmente a inglesa Joan, com quem se casou – o que vem a ser um bolinho de feijão, essa versão...11 set 2020
Humberto Werneck
Além de romancista graúdo, e sabe disso quem leu Triste fim de Policarpo Quaresma, ou Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto era um cronista dos bons – mais do que isso, era um cronista puro-sangue, desses que nos proporcionam a gratificante sensação de estarmos sentados a seu lado num meio-fio, ouvindo-o desenrolar o novelo de uma conversa boa. Aliás, tem tudo a ver a imagem do meio-fio, pois o Lima era um homem das ruas – coisa rara no universo literário de seu tempo, as duas primeiras décadas do século passado, quando escritor era quase sempre um homem de gabinete.
O cronista que agora chega ao nosso Portal tinha os olhos permanentemente postos em sua cidade, o Rio de Janeiro, com sua vida...31 ago 2020
Humberto Werneck
Quando menino, lá na sua Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, Rubem Braga não tinha grande apreço pela nossa Independência, por ter sido proclamada por um português. Nem pela instauração da República, porque lhe dava pena a figura do venerando imperador deposto. Digno de admiração, para ele, era o “conto de fadas” da Abolição da Escravatura, protagonizado por uma princesa, a Isabel, que na sua fantasia era “muito jovem, muito loura e muito linda”. Caiu das nuvens ao saber que a heroína não era nada disso, e jamais se conformou “com aquele seu retrato de matrona gorda”.
No final da adolescência, o Braga possivelmente se decepcionou, por mais de uma razão, quando, vitoriosa a Revolução de 30, Getúlio Vargas...