Casario e Castelo de São Jorge (ao fundo), Bairro de Alfama, Lisboa-Portugal, s.d. Foto de Augusto Carlos da Silva Telles/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Rachel de Queiroz conheceu Portugal de olhos fechados. Não tinha mapa nem placa que indicasse que aquele “rio tranquilo, muito largo e com pedras à margem”, por onde ia de barco, fosse português – “mas que era Portugal, não tinha dúvida”. Aos poucos, “uma cidade ou aldeia com casas antigas, abarracadas, subindo um morro”, foi se revelando. Eram tantos pomares que “o rio se afundava entre as árvores e se virava num riachinho à toa”. Daí, como acontece em muita História de sonho, quando a realidade empresta um pouco da fantasia do onírico, de repente “já não tinha riachinho, nem barco, nem nada”. Estava era dentro de uma casa, numa sala “com móveis pesados de talha” e “cortinas vermelhas de veludo”, habitada por um velho e duas velhas. Uma delas, sentada numa cadeira de balanço, tinha um gato branco no colo.
Receptivos, como costumam ser os lusitanos com turistas, os três engataram a falar e a cronista não conseguiu desfazer a impressão de que assistia a uma “das fitas de cinema português, cujo diálogo a gente nunca sabe se compreende tão mal porque é mesmo difícil de entender a língua deles ou se é porque o aparelho de som está ruim”. Tinha até trilha sonora para compor o momento. Curiosa, Rachel perguntou quanto custava uma casa por aquelas bandas, e o preço baixo a surpreendeu – no roteiro do sonho, a conversão cambial não chegou a ser um problema, ainda que “a velha falasse em escudos”, a moeda portuguesa substituída pelo euro. E então veio a vontade de comprar aquela casa: “Com a intensidade maior da minha vida, embora eu não tivesse coragem de o dizer às velhas, assaltara-me a cobiça de ser dona da casa delas, daquela e nenhuma outra – com aqueles móveis, e a pequena escada sumida na sombra da sala grande, e os três velhos e a cadeira de embalo com o gato branco”. Justo no ponto em que o sonho “esfumou-se em fade out” e seguiu outro caminho, nós vamos pegar nosso rumo. Mas recomendamos que você continue a jornada por conta própria. Ou melhor, entregue aos cuidados de Mafalda Lalanda, uma estudiosa portuguesa que nos gravou uma bela leitura da crônica, certamente estará em ótima companhia.
“Eu nunca vi Lisboa”, disse Rachel de Queiroz. Mesmo assim, amava a “velha alma portuguesa” sem restrições: gostava “do sotaque, dos pronomes certíssimos, da ternura, dos fados, do Vasco da Gama”. Admirava “o ar de raça velha, amadurecida, curtida pela vida – curtida por dois milênios de vida”. Talvez por culpa de um português “que cá por 1680, quando os outros procuravam as riquezas das minas ou as terras férteis do sul, acomodou-se à aridez da caatinga do Nordeste, casou com uma índia chamada Piaba e foi o tronco” de sua linhagem. Seu amor lusitano se dava em bloco, abarcando tanto o “talento” quanto a “rudeza” dos portugueses, até mesmo “quando são parvos, como eles dizem, pois sob a capa grosseira do simples, escondem um resíduo de experiência tão precioso quanto às riquezas estratificadas nas entranhas do chão”.
Rachel de Queiroz não foi a única entre nossos cronistas com raízes no além-mar: todos os avós de Rubem Braga eram portugueses. De Portugal, ele escreveu “algumas rápidas e curiosas experiências” que teve por lá, onde esteve algumas vezes. Apesar de ter expressado seu “grande carinho pela terra e pela gente” do Porto e de Lisboa, o cronista registrou a conversa que teve com alguns meninos – isto é, alguns “miúdos” –, o que acabou gerando “uma aluvião de cartas insultuosas e tentativas (inúteis) de pressão sobre a direção do jornal” em protesto. A razão: os garotos estavam todos com “um pé calçado e outro descalço – e nenhum fez cerimônia em nos explicar que andavam assim para economizar sapatos”. Não podiam abandonar de vez a sola porque “esse (grosso palavrão) desse Salazar” os proibia, para não causar má impressão nos turistas. A crítica sutil à ditadura salazarista, que Braga obviamente desprezava, foi o que moveu a queixa de alguns leitores – e um deles, português, fez questão de procurar o cronista bem mais tarde para pedir perdão, pois tendo voltado a Portugal depois de muitos anos ausente, constatou que sim, os miúdos andavam com um pé descalço. Rubem Braga tinha razão.
Falando em leitores portugueses, Otto Lara Resende comentou uma lista feita pelo Jornal de Letras de Lisboa, em 1992, que perguntou a vários artistas quais “as dez obras de autores portugueses e as dez de escritores estrangeiros que selecionariam para uma biblioteca ideal”. Os dez mais lá e cá “confirmam gostos, opções, percursos” e também “o ‘afecto’ que liga quem escreve ao ‘objecto’ de prazer e descoberta que é o livro”.
“Fora o ‘c’ metido no afeto e no objeto”, ponderou Otto, “a língua de lá é a mesma que aqui se escreve”. E, no entanto, quase nenhum brasileiro foi listado. Euclides da Cunha, uma das raras exceções, apareceu com Os sertões na escalação de José Saramago – cujo centenário, a propósito, comemoramos agora. “Machado de Assis vive lá numa penumbra”, apontou Otto, talvez um pouco assombrado, embora lhe parecesse natural “que as escolhas e os julgamentos lá e cá não coincidam”.
Trinta anos depois, como é bom poder constatar que o cenário mudou. Que as literaturas brasileira e portuguesa conversam o tempo todo. Que os cronistas de cá trocam figurinhas com os de lá. Que a distância do Oceano Atlântico, em letras, já quase não se mede. E que, para nossos irmãos portugueses, Capitu não mais é só “uma vaga moreninha que passou o marido pra trás”.