“Eu nunca vi Lisboa e tenho pena” diz-se no D. Jaime. Também o digo eu, com maior pena e maior verdade, porque aquilo que para o poeta era simples figura de verso, para nós não é figura, é realidade.

Nunca vi Lisboa, nem nunca vi as famosas areias de Portugal, faladas em outros versos os da antiga balada da “Nau Catarineta”. Este braço do Atlântico que parecia tão fácil de transpor aos homens das caravelas, é hoje novamente o Mar Tenebroso para os civilizados que o dinheiro pouco e o passaporte difícil amarram à sua terra de nascimento como a um campo de concentração.

Dito isto, vê-se que o segredo da minha alma é muito simples: nasci no país errado. Porque o país dos meus sonhos, a minha terra de eleição, a pátria perdida que nunca vi, é Portugal, amigos. Verdade que esse país dos meus sonhos e da minha eleição anda agora inabitável, mercê de certas razões políticas que toda a gente conhece, e que tornaram o idílico jardim da Europa à beira-mar plantado mais perigoso à vida e à felicidade humanas do que uma febre amarela endêmica ou uma tradição de pogroms.

E acontece que essa impossibilidade, tornando-o inacessível, torna-o também mais desejado, pois sejam quais forem os ventos da política, sejam quais forem os doutores que mandam em Lisboa, as aldeias serão sempre as mesmas, os mesmos a serra e o vale; e nem rei coroado, nem amo condecorado, a poder do que possam, terão força bastante para empeçonhar o sangue amorável que corre nas veias da gente de Portugal.

Ó velha alma portuguesa, como te compreendo e te amo! De português gosto de tudo ― tudo ―, do sotaque, dos pronomes certíssimos, da ternura, dos fados, do Vasco da Gama, seja o herói que venero ou o campeão pelo qual torço. E gosto mormente desse ar de raça velha, amadurecida, curtida pela vida ― curtida por dois milênios de vida que a nossa improvisação de mestiços nascidos ontem não compreende nem respeita.

Dir-me-eis que não é vantagem amar Portugal a quem quase aprendeu a ler nas páginas de Garrett ou do Eça. Quem resistiria ao encanto desses mágicos? E eu vos direi que sim, que não é vantagem realmente, a vantagem pertence toda ao santo Portugal que ainda tem forças para engendrar Garretts e Eças.

Contudo, não é apenas um caso de inoculação literária a minha ternura por Portugal; é coisa mais específica, mais da massa do sangue, que sobe e desce nas veias, aparece em sonhos, toma forma em lembranças e saudades de coisas que nunca vi; de muito longe me vêm de herança, através da lembrança e da saudade do fero português, que cá por 1680, quando os outros procuravam as riquezas das minas ou as terras férteis do sul, acomodou-se à aridez da caatinga do nordeste, casou com uma índia chamada Piaba e foi o tronco da minha gente.

E deixai-me dizer ainda que não sonho apenas com o pitoresco, sonho com tudo. Amo Portugal em bloco, com o seu lado positivo e seu lado negativo, o que desespera os espíritos ambiciosos e o que faz a felicidade dos humildes. Não quero só a écloga de Júlio Diniz ― embora queira muitíssimo a écloga de Júlio Diniz. Quero a alma e a carne de Portugal, no seu talento ou na sua rudeza: até quando são parvos, como eles dizem, pois sob a capa grosseira do simples, escondem um resíduo de experiência tão precioso quanto às riquezas estratificadas nas entranhas do chão.

Do muito que viram, e lidaram, e velejaram por tudo quanto é mar de meu Deus, deixando o seu esforço e a sua semente nos quatro cantos da terra, ficou-lhes um tesouro de sabedoria que muito me recorda a falada sabedoria dos chineses com os quais, é bom lembrar, tiveram os portugueses tanto contato. Uma noção do valor e da permanência da vida que se alça acima das contingências das misérias do momento, uma espécie de “alma grupo”, prudente e eterna, da qual eles todos participam desde o nascimento, como se diz que todos participamos do pecado original.

Tomemos por exemplo um dos portugueses condutores de bonde da nossa cidade ― tristes homens vítimas de uma das profissões mais ingratas que sei. Ganha mal, come mal, mora longe. Passa o dia e a noite fazendo ginástica entre os pingentes mal-humorados, cobrando o tostão da Light, “ao sol, à chuva, ao sereno”, nos meios-dias de verão, nas madrugadas de inverno. Natural que fosse uma alma azeda, ríspida, farto do mundo e dos seus enganos, adversário natural do próximo que só lhe aparece sob a figura odiosa do passageiro. Enfim, deverá ser o condutor de bonde a réplica eletrificada daquela feroz entidade filha da civilização do petróleo que se chama trocador de ônibus. Mas no entanto ― milagre da natureza humana ― o português condutor de bonde é um ente fraternal, cheio de paciência para com os passageiros em geral e cheio de olhares e palavras doces para as mulatas itinerantes. Cantarola o seu “faz favor” com a mesma cortês simpatia com que o seu irmão que ficou na terra saúda os conhecidos quando os encontra nas azinhagas da aldeia.

Nem o exílio, nem o mau clima, nem o desengano de encontrar na terra nova trabalho duro e pobreza extrema, em vez da fácil riqueza com que sonhara; nem a má comida, coisa que lhe fala tanto ao coração (como é bem que fale a todo homem de bom senso e noção de medida), ― a falta do bom vinho, do bom azeite, da fartura rústica do toucinho e da couve ― nada disso lhe rouba à alma as suas virtudes essenciais.

O estúpido esnobismo americano de hoje em dia nos vai distanciando sempre mais do português, o que equivale a nos desprender da parte mais original e melhor de nós próprios. Acostumamo-nos a ter em relação a Portugal um sorriso de condescendência, e lhe atiramos em rosto esta crise de desgraça política que a nação portuguesa atravessa, como se o povo português fosse mais culpado de seu fascismo do que nós o éramos do nosso, como se o doente e não o micróbio tivesse a responsabilidade da peste. Há quem faça pouco de Portugal porque não tem submarinos nem arranha-céus. Há quem zombe de Portugal porque vive do passado ― mas que dizer daqueles que, à falta de um passado heroico, sacam contra um futuro problemático?

Trocamos os vinhos ilustres pela Coca-Cola. E será que a barganha valeu a pena?

rachel-de-queiroz
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