Mostrou, sr. Thomaz Ribeiro Colaço, como um jornal de Lisboa truncou e deturpou a entrevista que Gilberto Freire deu a Francisco de Assis Barbosa ao voltar de sua viagem a Portugal e ao Império Português. A desonestidade do Diário de Notícias ou de seu censor é tão grande que mereceria, do mestre de Apipucos, uma reação enérgica. Não o julgo, entretanto, capaz de fazê-la. Já a sua entrevista é cheia de complacência para com a ditadura portuguesa, complacência de quem foi hóspede oficial, coberto de agrados e finezas. Querendo acender uma vela a Deus e outra ao sr. Salazar, acaba o sr. Freire vítima de uma pura maroteira, para a qual não encontrará remédio. Aos olhos do público português ele passará por uma salazarista vulgar.

A velha estima e grande admiração que dedico a Gilberto, não me impede de achar que foi bem feito.

Tenho algumas rápidas e curiosas experiências de Portugal. Da primeira vez que lá estive (e refuguei o oferecimento de um amigo, português, para sugerir ao governo de Lisboa que me fizesse seu hóspede), escrevi algumas pequenas crônicas em que falava do meu grande carinho pela terra e pela gente — sentimento muito fácil de explicar em um homem que só tem avós portugueses. Embora encantado pela lindeza de Lisboa, fiz questão de acentuar como gostara do Porto, com sua grande beleza e suas altas pontes. Disse mesmo que os portugueses costumam ser injustos com o Porto menos fácil de admirar. Na crônica eu registrava a conversa que tive (e tenho duas testemunhas brasileiras) com alguns moleques — ou “miúdos”, como lá se diz. Cada um tinha um pé calçado e outro descalço — e nenhum fez cerimônia em nos explicar que andavam assim para economizar sapatos. Não podiam andar completamente descalços por que esse (grosso palavrão) desse Salazar nos obriga a andar calçados. Por quê? E explicaram que era por nossa causa, por causa dos turistas. Falei também do rude trabalho das mulheres, as “carrejonas”, que exercem as funções de nossos carregadores e “burros sem rabo”. Como em muitos países da Europa, a mulher do povo, em Portugal, faz os trabalhos mais pesados e rudes. Se fiz essas observações, a verdade é que não me esqueci de anotar nem a beleza da terra nem a extrema, a excepcional gentileza com que em Portugal todo mundo trata o estrangeiro — ou pelo menos o brasileiro. A coisa é, na realidade, comovente, e voltou a me encantar de outras vezes que passei por Portugal.

O resultado de minhas notas perfeitamente honestas foi uma aluvião de cartas insultuosas e tentativas (inúteis) de pressão sobre a direção do jornal em que então eu escrevia, O Globo. Por sinal que um dos portugueses que então me atacaram, e cujo nome eu nem chegara a guardar, havia de procurar-me um ano depois, fazendo questão absoluta de me dar uma satisfação — pois, depois de muitos anos de ausência, tinha voltado à terra e vira que eu tinha razão; relera minhas crônicas e me procurava espontaneamente para se desculpar, pois era um homem de boa fé e lhe doía ter sido injusto...

Mas o que mais me surpreendeu em tudo isso foi uma sociedade de filhos ou amigos da cidade do Porto, existente no Rio — que votou unanimemente um protesto ou desagravo ou coisa que o valha, contra os “insultos torpes” que eu fizera à cidade que tanto me encantara. Essa injustiça ridícula me doeu: mais doerá a Gilberto a “falseta” de seus amigos salazaristas, apresentando-o em Portugal como um qualquer louvaminheiro do “Místico”...

rubem-braga
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